Talvez uma pergunta com ar inocente e cheia de infâncias subjacente, mas não podia deixar de escrever sobre o que me chamou atenção para isso. Nesses dias de sol a pique, onde o meio do dia parece precoce e com pressa de chegar, convidamos alguns pacientes de nossa Clínica psiquiátrica para um passeio nos arredores da cidade. Era algo em torno de 9 horas. Junta daqui, chama dali, conta-se mais uma vez pra certeza de todo mundo voltar e lá vamos nós.
Exército de Brancaleone sem causas ou bandeiras, nem brasões, nem nada, apenas o desejo de andar um pouco e... de tomar um picolé.
Por vezes vejo que a anestesia serve pra muita coisa, pois além de neutralizar a dor nos livra de ver o que parece tão óbvio. Naquele momento único, não estamos cumprindo nenhum plano estabelecido, nenhum sentido de equipe ou grupamento organizado para competir ou chegar em algum lugar. Nenhuma atividade de um clube, nenhuma ação entre amigos, nada, apenas o desejo que vai se consumando de andar um pouco e... tomar um picolé. De tão simples, para muitos não motiva e nem é considerada tão terapêutica. Claro, numa parafernália racional e tão técnica isso é muito pouco e parece nem servir pra muita coisa. Ai! Que pena. Que embotamento obtuso com gosto de requinte intelectual. Afinal quanto custa um picolé?
O exército de nada, que nem os inimigos se animam, avança de forma espetacular, feios sacrificados por Apolo que há muito já se foi, por Afrodite que se retirou talvez por vergonha, homens gordos ou magricelos, mulheres idem, algumas desdentadas, mostrando ali, bem ali que democracia é algo mais profundo, que vem do desejo verdadeiro de um povo que seus habitantes também possam ter direito ao cuidado, ao conforto e a beleza. A imagem mostrava claramente tudo que ficou aquém. Nada ali se excedia para melhor pelo contrário, revelava-se o quanto tudo pode ser cruel, tudo pode ficar mal-feito e pouco convidativo, principalmente pela falta de motivo do que comemorar.
Estou eu, absorto, cheio de reflexões compassivas e provocando a ordem da vida, quando de repente, um guerreiro, me dá uma tapa e me diz num tipo de dialeto “qué picolé?”, era um amigo, desses que não se espera reciprocidades chamado carinhosamente por “Bomba”. O susto foi duplo, bomba é um negão feio, desdentado, surrado e matriculado desde cedo na lista dos que não vão. Não há endereço para ir.
Estou eu, absorto, cheio de reflexões compassivas e provocando a ordem da vida, quando de repente, um guerreiro, me dá uma tapa e me diz num tipo de dialeto “qué picolé?”, era um amigo, desses que não se espera reciprocidades chamado carinhosamente por “Bomba”. O susto foi duplo, bomba é um negão feio, desdentado, surrado e matriculado desde cedo na lista dos que não vão. Não há endereço para ir.
Tipo oligo, déficit intelectual acentuado, vez por outra fala em briga e polícia, talvez dois significantes do por onde andou. É dessas criaturas que saber a história faz pouca diferença em sua destinação, não parece ter brotado de história nenhuma ou se assim foi a história, o expulsou. E o picolé?
Sempre acredito que em algum lugar do universo a vida se junta. Não custa nada pensar assim, torna mais viável a poesia e o mistério, duas coisas que a razão ocidental insiste em desmerecer. Bom, o picolé, eu sabia que o picolé é como gostam os behavioristas um bom reforço e que muitos pacientes gostam, mas não esperava que este fosse sinistro, tipo indecifrável fizesse questão dele. Isso me animou sobremaneira. Sou a favor da vida e tenho diagnósticos apenas como uma mesa para se organizar raciocínios e bem intencionados, que são de muito valor para estratégias clínico-terapêuticas, mas só! Nenhuma criatura é um diagnóstico e pronto. Há ali, um humano, ou infra-humano, ou subumano ou um ET. Sei lá, talvez uma performance experimental do Mistério, onde algo ficou a desejar, mas isto torna a questão ainda mais interessante, pois amplia a concepção dando ao humano espectros mais amplos e nos tornando participantes e responsáveis pelos nossos afins.
Sempre achei a loucura um mundo paralelo tanto pra cima como pra baixo, que vai desde os chamados “loucos egrégios”, geniais, criativos, revolucionários até o Zé-ninguém como Reich os nomeou. São anônimos, sem reconhecimento ou prestígio, mas que se revelam para os que por eles se interessam.
Sempre achei a loucura um mundo paralelo tanto pra cima como pra baixo, que vai desde os chamados “loucos egrégios”, geniais, criativos, revolucionários até o Zé-ninguém como Reich os nomeou. São anônimos, sem reconhecimento ou prestígio, mas que se revelam para os que por eles se interessam.
Toda terapêutica a meu ver é uma oferta digna para os que se esforçam para mostrar onde ficaram, por não quererem ou não poderem ir um pouco mais adiante.
Um picoléééééé! Eis um desejo humano, eis um momento irrisório no tempo de reconciliação, passa rapidíssimo. É pegar ou largar e eu só agradeço pela chance de poder pegar um momento tão profundamente superficial.
Vamos lá negão, tá chegando, quer de quê?
Côco, diz ele no seu verbal descompassado. Ofereço o picolé e ele devolve dizendo que quer que eu abra pra ele, que se lambuza de branco, com apetite e um prazer que me delícia no lugar onde o humano revela todos os prazeres e todas as emoções, no coração. Há entre nós um vínculo que não vincula, como em geral, concebemos, mas um vínculo cósmico, esses que se sente mas não se lê, pois não está escrito.
Eu, numa estrela tão distante, ele em outra que não vejo com nenhum Hubble da vida, mas vejo com as lentes pequenas e míopes que meu coração ainda pequeno me permite ver. Vai “Bomba” celebra a vida me ensinando que a beleza da vida não está no pronto, mas na viagem que 0,50 pode proporcionar aos que só podem descobri-la no simples, mesmo que efêmero.