Recentemente uma pessoa de minha família , após 2 anos de muito
sofrimento em função de um câncer e outras infecções , e já traqueostomizada ,
falando com enorme dificuldade e bem baixinho, disse a sua filha, que estava
morrendo.
Minha sobrinha me ligou assustada , pois era primeira vez, em todo este
tempo, que sua mãe dizia tal coisa. Fomos vê-la já com certa impressão de despedida,
e com certo sentimento opressivo no peito,e enquanto dirigia pensava em como
era a vida , principalmente no que tange a este momento terminal , onde reis e
rainhas , ricos e pobres, bacanas e plebeus , enfim, todos um dia hão de estar
.
Minha cunhada sempre foi animada , bem disposta e certo dia descobriu um
câncer de mama , que após tratado , foi dado como “zerado”, mas sobre controle
periódico. Tempos depois , viria de forma breve e rápida a morte de meu irmão,
mas ela resistia bravamente.
Quando chegamos , o cenário era o mesmo que antes tinha visto , ou seja,
ela deitada com dois botijões de oxigênio ao lado , com a sonda enfiada goela
abaixo , olhos abertos e um emudecimento imposto pelo quadro clínico, já que
parecia não faltar desejo de falar.
Seu balbucear era intraduzível , ao que minha sobrinha , fiel
intérprete, nos socorria da angústia de ouvir e não saber o que , uma estranha
conversa sem reciprocidades.
Imaginei o quão desesperador seria falar e não ser ouvido ou entendido, sem
ser mudo, já que a cadeia de pensamentos devia ser ampla , indagações
onipresentes, e principalmente, a consciência de uma luta sem prognóstico , a
não ser a oferecida pelo desejo de viver e melhorar.
O corpo já bastante desfigurado pelo sofrimento sequencial , sem tréguas,
e principalmente , pela violência compreensível de se ver fora de casa , meses
a fio, e que em retornos à mesma , na promessa de poder ficar durante bom
tempo, era quebrada por alguma inter-corrência clínica, e logo, de volta ao
hospital.
Sempre fico pensando que os nervos são a própria cabeça de cada um de
nós , que nosso sistema nervoso é a continuidade das imagens que projetamos a
cada momento , mas principalmente, as de forte impressão, ou seja, aquelas em
nosso destino parece estar em jogo e que nos damos conta de que já não temos o
controle do que pode nos acontecer.
Passar a noite em um hospital numa expectativa sabe-se do que, um lugar
estranho que só nos faz lembrar de nosso quarto, de nossa cama , enfim, do
conforto habitual do dormir , mas prioritariamente do conforto de nossa saúde,
é a princípio assustador.
Há um certa fantasia de interligação do hospital com o cemitério, que
obviamente carece de lógica, embora nem sempre. Abre-se uma etapa de dor e
sofrimento que não oferece garantias de término , embora dependendo do
diagnóstico nos sentimos jogados ou num alívio cheio de “ Graças a Deus” , ou
num sentimento indescritível , ou um presságio, de algo profundo e sinistro que
se aproxima para ficar.
A família , o companheiro ou
companheira também abrem uma peregrinação pela dor , um conjunto afetado pelo
destino e que lutam para que a vida se preserve e que volte como era antes.
Mas em muitos casos não é assim . Nunca mais será como antes , um luto
do que já não pode ser , um adeus dito à força, sem que a boca se abra. Uma
névoa baixa, sem que a luz permita ver, uma comoção de fé , que de súbito
descobrimos que não temos, um grande desamparo, onde a vida se esvai, para
muito além dos limites de nosso corpo .
Minha cunhada me parecia nesse momento e nesse lugar , um lugar de quase
nenhuma palavra , já que parecemos negar a morte até o fim, como se nos
recusássemos a admiti-la e falar dela é quase autorizá-la , o que nos tornaria
assassinos por falar do que não deve.
Me lembro quando perguntei a meu pai se ele tinha medo de morrer ,
causei um frenesi em família , porque isso não é pergunta que se faça ,ou seja,
há o medo de que a pergunte mate.
Mas tomar consciência de que estamos no fim e que vamos partir e ter que
deixar tudo e todos , completamente pelados , tal como chegamos , é duro
demais.
Nós sem a vida e a vida sem nós , algo inconcebível , em planos comuns e
ordinários como o que vivemos , sabemos que devemos desapegar e só de pensar
nisso começamos a fazer questão de tudo, uma estranha fantasia que se nos
agarrarmos direitinho a morte não nos verá.
Mas parece haver um momento que algo se afigura, e mesmo sem formato
definido , parece ir chegando aos poucos e nos fazendo sentir longe , um longe
só , um retorno ou um mergulho no que parece estar além , uma além que vai
chegando e ficando pertinho , um longe –perto , ou um perto que vai nos levando
pra longe.
Se largar, dizem os Mestres é o melhor , uma experiência de total
entrega e única , como nunca fizemos em vida, um tipo de libertação consciente
e decisiva . Mas quem de nós pensa em se largar numa hora dessa?
Quem pensa em deixar filhos , marido, mulher, carro ,casa , etc ? é uma
falência múltipla do apêgo, um largar em grande escala , um desinvestimento súbito
em tudo que passamos a vida investindo , um suicídio econômico , uma exigência
apavorante ao nosso pobre ego sem alma.
Minha cunhada suspirou que estava morrendo não pelos remédios , segundo
pergunta sugerida, mas disse em voz baixinha “ É pela minha vida mesmo que
estou morrendo”.
Essa frase me fez viajar para profundezas , pois tenho relatos dos que
antes de morrerem pareceram ver suas vidas de forma global , um tipo de síntese
espiritual do que valeu ou não valeu a pena espiritualmente , um conceito do
Cristianismo primitivo chamado”metanóia”, um certo repassar da vida a luz de si
mesmo .
Sempre me causou impressão de que nessa hora , nesse repasse nos
déssemos conta do que poderia ter sido diferente, da dor que deixamos nos
outros, das mentiras com que nos descomprometemos , do amor que calamos e das
críticas que exaltamos , talvez a consciência tardia de nossas deformações
negadas e orgulhosamente blindadas.
Mas como tudo isso é profundo , como sabemos disso e nos esquecemos
sempre , porque o orgulho é o nosso rei? Talvez a morte saiba disso e suas
figurações seja de acordo com isso também , pois sua proximidade nos faz sentir
o que vai ser arrancado e nos exacerba o medo do que de nós será descoberto ,
um sentido radical de transparência , onde todos nosso erros inconfessados nos
esperasse logo na primeira esquina.
E o que teremos a nosso favor? Com o que nos defenderemos se sequer
conhecemos quem nos acusa? O tribunal teológico parece ingênuo perante nossas
obstinações explicativas , pois na medida em que nos vemos perante a outra face
da vida, nossa cidadania se esvaísse, e já não conhecessemos à que legislação
estamos sujeitos.
Nosso fim parece tão triste, que sequer conseguimos pensar na
possibilidade de estarmos recomeçando ,sem nenhuma religiosidade no profundo e
cultivando a superfície , temos a fantasia de sermos tragados por um buraco sem
fim, uma eterna queda sem descanso , o pessimismo ,o pavor dos que vivem a Deus
sem piedade, dos que fizeram do Espírito um descaso no seu viver cotidiano , o
corpo como templo da eternidade.
Se há uma vida além do cemitério, como todas as culturas mais
espiritualizadas afirmam, deveríamos estudá-la com afinco, e tirar proveito
para nossa forma de viver, e não renegá-la ao espaço menor do imaginário
intelectual. Não ficaremos mais vivos negando a morte , pelo contrário , somos
tomados pelo medo de viver e de perder , o que nos leva a uma contabilidade
mesquinha dos apêgos desnecessários , que a tesoura da morte não dispensará.
Minha cunhada nunca me pareceu tão profunda, e se mantém viva enquanto
escrevo o artigo, mas após este encontro, me ficou como uma lição que agradeço
e compartilho .
Agradeço o retorno