O Hospital Psiquiátrico- O cemitério das conexões e da ressureição
Embora o título possa parecer fúnebre , não é bem esta idéia que me
anima .
O que me instiga, é a possibilidade de pensar um certa idéia de campo
onde um conjunto amplo de pessoas , têm as suas vidas ou o que resta delas se
compartilhando habitualmente, sem que antes tenha havido entre elas qualquer familiaridade.
Se pra nós a familia é a matriz do convívio e se os amigos pertencem às
escolhas que fizemos , o que se passa quando temos que conviver sem
familiaridade ou sem escolhas?
Me parece que todas as tentativas feitas de mudanças na dinâmica ou de
transformação do hospital psiquiátrico , obedeceram a duas pretensões : ou de
favorecer vínculos e dinâmicas mais vivas na dimensão interna ou de tentar
buscar espaços novos de inclusão do lado de fora.
Ou caímos nas propostas psicodinâmicas ou em lutas políticas relativas
aos direitos de cidadania do doente .Em algum momento todas foram válidas ,
embora passem e fica a conta do que restou.
Agora mesmo temos aí a Reforma , que buscando um impacto de ruptura ,
chegou ao extremo de propor o fim dos hospitais psiquiátricos . Assim como
Baságlia em Trieste , que num contexto próprio e amparado pelo partido
comunista italiano sugeriu então que o paciente fosse de responsabilidade
comunitária .Apêlo , diga-se , de teor fortemente humanitário , mas que só teve
força de sustentação com o próprio Baságlia , já que após sua morte houve um
reaparecimento ainda maior do hospital psiquiátrico.A doença mental parece
pertencer a um universo próprio, um campo complexo de forças entrelaçadas , que
mesmo que num momento histórico queiramos destacar uma, logo o campo se recompõe
, desafiando os alcances de nossos saberes.
A apoteose em Kingsley Hall com Laing e Cooper, com a proposta de uma
anti-psiquiatria , aproveitando os tempos de novas buscas para o estabelecido ,
em quase todas as áreas , assim como, a tentativa de Maxwel Jones, de dar ao
hospital psiquiátrico um caráter comunitário , preservando a rede de convívio e
de produção social , onde o cotidiano pudesse manter os rituais do fazer e da
participação do mundo lá fora. Propunha uma certa concepção mais horizontal ,
menos hierárquica do tratamento psiquiátrico , uma comunidade que produzia seus
viveres e relações.
Possivelmente foram experiências que ajudaram a modernizar o Hospital e
marcar alguns valores, que foram incluídos no modo como o lugar do doente
mental foi sendo des-demonizado ,e o hospital menos temido .
Mas se tudo isto fez com que
novas matérias trouxessem novas exigências estudiosas e alimentassem o debate ,
por outro , o avanço das medicações ,também possibilitou , um perfil mais ágil
do tratamento em relação ao tempo e consequentemente um menor período de
exclusão social.
Mas nosso estudo não visa exatamente um exame histórico dessas ações ,
embora de extremo interesse .
O que gostaria de recortar aqui se refere a um tipo de vazio, com
feições de nada, que a meu ver tangencia um pouco o foco dessas iniciativas .
É um vazio que chamarei de vazio na alma que parece impreenchível , um
tipo de esvaziamento das consistências , que configura uma aura de exílio , que
chega a contagiar os que precisam de foco para trabalhar.
Acostumados a um modo de apreensão , um certo perfil do tempo e do
espaço onde o olhar mais analítico busca conectar para poder ver , algo lábil
que não se deixa pegar, comparece, e ao mesmo tempo , por parecer tão visível
faz com que as estratégias do pensamento comecem a pontilhar . É como ver e não
poder pegar , algo como um sopro que se desvencilha a revelia do desejo .
É um fenômeno incrível que têm registro energético no campo sensível ,
como se largar ou se afastar trouxesse certo alívio e ao mesmo tempo um tipo de
frustração dos nexos do sentido, embotasse a significação .
Este tema embora teoricamente presente , mesmo que de forma oblíqua está
presente na Psicanálise . Em Freud quase como desistência pois" o
psicótico não sustenta relação transferencial ". Em Lacan com a questão do
"Nome do Pai que não se inscreveu" , caminho teórico longo e de
poucos efeitos clínicos e talvez no questionamento das condições de sentido em Wittegeisten
.
O que se sustenta aqui, é o acesso ao simbólico como condição da palavra
a que o psicótico não teve acesso , logo não pôde se inscrever na ordem da
cultura , lugar conferido aos sócios , aqueles que se tornaram sujeitos
sociais.
Mas nada disso satisfaz . O surpreendente é que algo vem e vai com mesma
rapidez , um jogo sem regras de presença- ausência tão instantâneo , como se
fosse um labirinto no éter, que a quase todo tempo , é difícil não se ter a
impressão de universos paralelos.
Não se sustenta a conexão. Cai a conexão que parece tão frágil , cai a
rede de sustentação da comunicação usual. Lá se vai , lá se foi.
Por isto que quando um pouco mais é possível os profissionais se alegram
, pois têm a impressão que conseguiram desta vez pegar algo. É um trabalho
árduo de paciência e humildade que não justifica vaidades , pois aqui nenhum
diploma é mais hábil.
Sempre desconfio que os auxiliares de enfermagem têm formas de
penetração neste labirinto que profissionais mais graduados, pode não ter .Justo
por estarem mais expostos , mais ali junto , e nunca se sabe a hora que algo
consiste. Não é algo que pode ser combinado previamente , talvez por isto
muitas consultas pouco consigam.
Uma consulta não funciona como senha para consistência , embora sirva
para se verificar o estado geral do paciente , seu desenvolvimento clínico ,
enfim , sua melhora ou piora.
Estas manifestações da consistência ou mesmo o momento da inconsistência
só podem ser apreendidas de forma espontânea no habitat onde o paciente está .
Aqui sugiro uma ação mais de campo onde a vida está mais a vontade do
que o modo artificial de gabinete . Prender o paciente no gabinete para
escritas artificiais não permite chegar na sua alma e nem trazê-la.
Mas afinal o que é isto ?
O que é o sofrimento relativo às conexões?
Minha hipotése é que o paciente foi excluído das conexões que sustentam
o mundo enquanto sentido, lesões nas proposições lógicas que regem e ordenam
nosso sentido dominante da realidade e os torna seres dotados de um aquém ou um
além, em que nossas teorias buscam penetrar , mas que talvez errem na premissa
inicial.
Suponho que criaturas que habitam os limiares requisitam outras pontes
de acesso e não ordenações que lhe domestiquem pura e simplesmente.
Começando pela família ou antes
ou depois de seu adoecer , foi se inscrevendo numa rede de exclusões que seu
mundo pra cá ,seu mundo comum , foi-se estilhaçando ou não teve forças de
estruturação.
A alma nossa de cada dia que precisa de reconhecimento e valorização ,
vai se fragilizando de tal forma , que seus modos de participação não consistem
, e sem o calor que faz viver vão ficando frios e distantes. Com isto duas
coisas acontecem:
Uma regressão aos modos infantis onde a demanda não permite novas
simbolizações , pois o simbólico ficou cheio de fissuras e rasgos na expressão
, possivelmente por distâncias e depreciações no convívio . Neste caso , a
ligação só pode se dar numa esfera psíquica empobrecida , em geral , repetitiva
e cansativa para quem se oferece.
Ou então , um exílio quase impenetrável que mais parece um des-lugar do
que um lugar de qualquer coisa propriamente dito. Que difícil é ( e aqui abro
estes parênteses para sugerir aos amigos trabalhadores da saúde que
compartilhem mais as dificuldades que sentem , pois sem dúvida, esta seria uma
linguagem comum e fácil de se entender, ao mesmo tempo que nos tornaria mais
parceiros nesta empreitada enigmática).
É algo como tocar uma criatura humana e ao mesmo tempo não conseguir
pegá-la , embora ela mesma possa se oferecer para tal.
No nível da regressão temos a impressão de algo deixou a desejar , não
foi adiante .
O projeto humano foi abortado em algum nível . Tem -se a impressão que
não era só isto.
Em alguns exercícios clínicos imagino como poderia ser tal paciente, se
as condições fossem outras, que vivacidade teria , que homem ou mulher ali
estaria .
Mas também penso no eterno retorno de Nietszche , onde tudo que passou ,
ali de novo passará . Como me faz bem pensar assim. Parece que estamos
assistindo a um ensaio da própria vida consigo mesmo em níveis mais
espetaculares do que supomos .
Entrar em contato verdadeiro em níveis mais profundos nos faria tremer ,
já que se há uma ordem subjacente na vida como dizia David Bohm , o que rege
estes determinismos que escolhe uns e poupa outros?
Se pertencemos a uma alma coletiva inconsciente que nos é comum , como
alega Bert Hellinger o criador das Constelações familiares em seus estudos
renovadores , as anomalias nos pertencem , pois pertencemos ao mesmo tecido
conjuntivo.
Pensar assim é intrigante , pois sem dúvida, embora possamos nos
defender e nos defendemos claro , o sofrimento ou a dor do doente mental nos
parece tão próxima que criamos de imediato uma fantasia de distância.
Propor, dinamizar , criar propostas de trabalho é bom e nos conforta ,
pois nos oferece a satisfação de estarmos fazendo nossa parte e isto é bom.
A doença mental é uma doença no tempo que requer muito amor e dedicação
para pouco retorno, o que já é muito. Boas medicações , trabalhos de grupo ,
escutas individuais , oficinas de trabalhos manuais , comemorações que empuxam
alegrias , música , dança , fazem parte dos jogos de animações da vida ,
enquanto prescrustamos o estranho labirinto da alma humana. Se lá está o
Minotauro , que descubramos seu segredo para libertá-lo e nos libertarmos
também. Caso haja, o que Hellinger chama de alma coletiva , então algo da nossa
alma anima a chama do viver dos pacientes e vice-versa.Mas aí, o nível é mais
profundo, pois a alma é profunda e sutil e aí não há dívidas . Muitas das
nossas alegrias parecem estar em algum tipo de restituição que sentimos fazer,
quando o tornarmos mais satisfeitos mesmo que momentaneamente . Já foram muito
tomados , a vida já levou muito deles. E nós temos muito perante eles,
inclusive uma vida própria .
É incrível a sensação que dá quando por trás dos escombros encontramos
vida. Um gesto anímico qualquer de um vestígio humano , naqueles pacientes mais
comprometidos .
Parece que somos caçadores de vida , embora a morte também faça
parte.Mas é tão diferente incorporar a morte em vida através de determinadas
serenidades espirituais que não temos , do que a morte enquanto um anonimato do
perfil humano.E aí vem o cemitério.
Digo, cemitério, pois desconfio que haja muitas conexões enterradas ou
por asfixia, ou anemia ou mesmo por violência . Talvez um pouco de cada.
Há um gosto de morte na doença mental , vejo pelo modo como os pacientes
morrem e poucos se importam . Em algum nível suspeito que já eram "mortos'
, pois só se vive por amor ,sem amor não há vida. Ocupam esses lugares anônimos
a espera de que possamos chegar mais próximo.Mas acredito também que aonde for
possível restabelecer ou recriar algumas conexões não tão enterradas , ficamos
felizes e como ter uma família afim, faz diferença .Pelo menos que o Hospital
seja uma casa de ressureição do possível , um lugar no universo onde os loucos
possam se transmutar e re-encontrar sua integridade humana, por mais que
demore.
A utopia não pode ser descartável , ao risco embotarmos nossas
disposições amorosas e em se tratando do doente mental , o paciente de prazo
longo , ou de prazos entrecortados , nada podemos garantir , pois como
trabalhadores já vibramos muito em tirar o paciente de seus horrores
enigmáticos . Talvez e suspeito disso , sejamos o espelho que o mantém enquanto
uma identidade que luta para não naufragar no que tem de humano.
ACEITARIA DE BOM GRADO COMENTÁRIOS DOS AMIGOS.