6.7.12


O Hospital Psiquiátrico- O cemitério das conexões e da ressureição



Embora o título possa parecer fúnebre , não é bem esta idéia que me anima .

O que me instiga, é a possibilidade de pensar um certa idéia de campo onde um conjunto amplo de pessoas , têm as suas vidas ou o que resta delas se compartilhando habitualmente, sem que antes tenha havido entre elas qualquer familiaridade.

Se pra nós a familia é a matriz do convívio e se os amigos pertencem às escolhas que fizemos , o que se passa quando temos que conviver sem familiaridade ou sem escolhas?

Me parece que todas as tentativas feitas de mudanças na dinâmica ou de transformação do hospital psiquiátrico , obedeceram a duas pretensões : ou de favorecer vínculos e dinâmicas mais vivas na dimensão interna ou de tentar buscar espaços novos de inclusão do lado de fora.

Ou caímos nas propostas psicodinâmicas ou em lutas políticas relativas aos direitos de cidadania do doente .Em algum momento todas foram válidas , embora passem e fica a conta do que restou.

Agora mesmo temos aí a Reforma , que buscando um impacto de ruptura , chegou ao extremo de propor o fim dos hospitais psiquiátricos . Assim como Baságlia em Trieste , que num contexto próprio e amparado pelo partido comunista italiano sugeriu então que o paciente fosse de responsabilidade comunitária .Apêlo , diga-se , de teor fortemente humanitário , mas que só teve força de sustentação com o próprio Baságlia , já que após sua morte houve um reaparecimento ainda maior do hospital psiquiátrico.A doença mental parece pertencer a um universo próprio, um campo complexo de forças entrelaçadas , que mesmo que num momento histórico queiramos destacar uma, logo o campo se recompõe , desafiando os alcances de nossos saberes.

A apoteose em Kingsley Hall com Laing e Cooper, com a proposta de uma anti-psiquiatria , aproveitando os tempos de novas buscas para o estabelecido , em quase todas as áreas , assim como, a tentativa de Maxwel Jones, de dar ao hospital psiquiátrico um caráter comunitário , preservando a rede de convívio e de produção social , onde o cotidiano pudesse manter os rituais do fazer e da participação do mundo lá fora. Propunha uma certa concepção mais horizontal , menos hierárquica do tratamento psiquiátrico , uma comunidade que produzia seus viveres e relações.

Possivelmente foram experiências que ajudaram a modernizar o Hospital e marcar alguns valores, que foram incluídos no modo como o lugar do doente mental foi sendo des-demonizado ,e o hospital menos temido .

 Mas se tudo isto fez com que novas matérias trouxessem novas exigências estudiosas e alimentassem o debate , por outro , o avanço das medicações ,também possibilitou , um perfil mais ágil do tratamento em relação ao tempo e consequentemente um menor período de exclusão social.

Mas nosso estudo não visa exatamente um exame histórico dessas ações , embora de extremo interesse .

O que gostaria de recortar aqui se refere a um tipo de vazio, com feições de nada, que a meu ver tangencia um pouco o foco dessas iniciativas .

É um vazio que chamarei de vazio na alma que parece impreenchível , um tipo de esvaziamento das consistências , que configura uma aura de exílio , que chega a contagiar os que precisam de foco para trabalhar.

Acostumados a um modo de apreensão , um certo perfil do tempo e do espaço onde o olhar mais analítico busca conectar para poder ver , algo lábil que não se deixa pegar, comparece, e ao mesmo tempo , por parecer tão visível faz com que as estratégias do pensamento comecem a pontilhar . É como ver e não poder pegar , algo como um sopro que se desvencilha a revelia do desejo .

É um fenômeno incrível que têm registro energético no campo sensível , como se largar ou se afastar trouxesse certo alívio e ao mesmo tempo um tipo de frustração dos nexos do sentido, embotasse a significação .

Este tema embora teoricamente presente , mesmo que de forma oblíqua está presente na Psicanálise . Em Freud quase como desistência pois" o psicótico não sustenta relação transferencial ". Em Lacan com a questão do "Nome do Pai que não se inscreveu" , caminho teórico longo e de poucos efeitos clínicos e talvez no questionamento das condições de sentido em Wittegeisten .

O que se sustenta aqui, é o acesso ao simbólico como condição da palavra a que o psicótico não teve acesso , logo não pôde se inscrever na ordem da cultura , lugar conferido aos sócios , aqueles que se tornaram sujeitos sociais.

Mas nada disso satisfaz . O surpreendente é que algo vem e vai com mesma rapidez , um jogo sem regras de presença- ausência tão instantâneo , como se fosse um labirinto no éter, que a quase todo tempo , é difícil não se ter a impressão de universos paralelos.

Não se sustenta a conexão. Cai a conexão que parece tão frágil , cai a rede de sustentação da comunicação usual. Lá se vai , lá se foi.

Por isto que quando um pouco mais é possível os profissionais se alegram , pois têm a impressão que conseguiram desta vez pegar algo. É um trabalho árduo de paciência e humildade que não justifica vaidades , pois aqui nenhum diploma é mais hábil.

Sempre desconfio que os auxiliares de enfermagem têm formas de penetração neste labirinto que profissionais mais graduados, pode não ter .Justo por estarem mais expostos , mais ali junto , e nunca se sabe a hora que algo consiste. Não é algo que pode ser combinado previamente , talvez por isto muitas consultas pouco consigam.

Uma consulta não funciona como senha para consistência , embora sirva para se verificar o estado geral do paciente , seu desenvolvimento clínico , enfim , sua melhora ou piora.

Estas manifestações da consistência ou mesmo o momento da inconsistência só podem ser apreendidas de forma espontânea no habitat onde o paciente está .

Aqui sugiro uma ação mais de campo onde a vida está mais a vontade do que o modo artificial de gabinete . Prender o paciente no gabinete para escritas artificiais não permite chegar na sua alma e nem trazê-la.

Mas afinal o que é isto ?

O que é o sofrimento relativo às conexões?

Minha hipotése é que o paciente foi excluído das conexões que sustentam o mundo enquanto sentido, lesões nas proposições lógicas que regem e ordenam nosso sentido dominante da realidade e os torna seres dotados de um aquém ou um além, em que nossas teorias buscam penetrar , mas que talvez errem na premissa inicial.

Suponho que criaturas que habitam os limiares requisitam outras pontes de acesso e não ordenações que lhe domestiquem pura e simplesmente.

 Começando pela família ou antes ou depois de seu adoecer , foi se inscrevendo numa rede de exclusões que seu mundo pra cá ,seu mundo comum , foi-se estilhaçando ou não teve forças de estruturação.

A alma nossa de cada dia que precisa de reconhecimento e valorização , vai se fragilizando de tal forma , que seus modos de participação não consistem , e sem o calor que faz viver vão ficando frios e distantes. Com isto duas coisas acontecem:

Uma regressão aos modos infantis onde a demanda não permite novas simbolizações , pois o simbólico ficou cheio de fissuras e rasgos na expressão , possivelmente por distâncias e depreciações no convívio . Neste caso , a ligação só pode se dar numa esfera psíquica empobrecida , em geral , repetitiva e cansativa para quem se oferece.

Ou então , um exílio quase impenetrável que mais parece um des-lugar do que um lugar de qualquer coisa propriamente dito. Que difícil é ( e aqui abro estes parênteses para sugerir aos amigos trabalhadores da saúde que compartilhem mais as dificuldades que sentem , pois sem dúvida, esta seria uma linguagem comum e fácil de se entender, ao mesmo tempo que nos tornaria mais parceiros nesta empreitada enigmática).

É algo como tocar uma criatura humana e ao mesmo tempo não conseguir pegá-la , embora ela mesma possa se oferecer para tal.

No nível da regressão temos a impressão de algo deixou a desejar , não foi adiante .

O projeto humano foi abortado em algum nível . Tem -se a impressão que não era só isto.

Em alguns exercícios clínicos imagino como poderia ser tal paciente, se as condições fossem outras, que vivacidade teria , que homem ou mulher ali estaria .

Mas também penso no eterno retorno de Nietszche , onde tudo que passou , ali de novo passará . Como me faz bem pensar assim. Parece que estamos assistindo a um ensaio da própria vida consigo mesmo em níveis mais espetaculares do que supomos .

Entrar em contato verdadeiro em níveis mais profundos nos faria tremer , já que se há uma ordem subjacente na vida como dizia David Bohm , o que rege estes determinismos que escolhe uns e poupa outros?

Se pertencemos a uma alma coletiva inconsciente que nos é comum , como alega Bert Hellinger o criador das Constelações familiares em seus estudos renovadores , as anomalias nos pertencem , pois pertencemos ao mesmo tecido conjuntivo.

Pensar assim é intrigante , pois sem dúvida, embora possamos nos defender e nos defendemos claro , o sofrimento ou a dor do doente mental nos parece tão próxima que criamos de imediato uma fantasia de distância.

Propor, dinamizar , criar propostas de trabalho é bom e nos conforta , pois nos oferece a satisfação de estarmos fazendo nossa parte e isto é bom.

A doença mental é uma doença no tempo que requer muito amor e dedicação para pouco retorno, o que já é muito. Boas medicações , trabalhos de grupo , escutas individuais , oficinas de trabalhos manuais , comemorações que empuxam alegrias , música , dança , fazem parte dos jogos de animações da vida , enquanto prescrustamos o estranho labirinto da alma humana. Se lá está o Minotauro , que descubramos seu segredo para libertá-lo e nos libertarmos também. Caso haja, o que Hellinger chama de alma coletiva , então algo da nossa alma anima a chama do viver dos pacientes e vice-versa.Mas aí, o nível é mais profundo, pois a alma é profunda e sutil e aí não há dívidas . Muitas das nossas alegrias parecem estar em algum tipo de restituição que sentimos fazer, quando o tornarmos mais satisfeitos mesmo que momentaneamente . Já foram muito tomados , a vida já levou muito deles. E nós temos muito perante eles, inclusive uma vida própria .

É incrível a sensação que dá quando por trás dos escombros encontramos vida. Um gesto anímico qualquer de um vestígio humano , naqueles pacientes mais comprometidos .

Parece que somos caçadores de vida , embora a morte também faça parte.Mas é tão diferente incorporar a morte em vida através de determinadas serenidades espirituais que não temos , do que a morte enquanto um anonimato do perfil humano.E aí vem o cemitério.

Digo, cemitério, pois desconfio que haja muitas conexões enterradas ou por asfixia, ou anemia ou mesmo por violência . Talvez um pouco de cada.

Há um gosto de morte na doença mental , vejo pelo modo como os pacientes morrem e poucos se importam . Em algum nível suspeito que já eram "mortos' , pois só se vive por amor ,sem amor não há vida. Ocupam esses lugares anônimos a espera de que possamos chegar mais próximo.Mas acredito também que aonde for possível restabelecer ou recriar algumas conexões não tão enterradas , ficamos felizes e como ter uma família afim, faz diferença .Pelo menos que o Hospital seja uma casa de ressureição do possível , um lugar no universo onde os loucos possam se transmutar e re-encontrar sua integridade humana, por mais que demore.

A utopia não pode ser descartável , ao risco embotarmos nossas disposições amorosas e em se tratando do doente mental , o paciente de prazo longo , ou de prazos entrecortados , nada podemos garantir , pois como trabalhadores já vibramos muito em tirar o paciente de seus horrores enigmáticos . Talvez e suspeito disso , sejamos o espelho que o mantém enquanto uma identidade que luta para não naufragar no que tem de humano.

ACEITARIA DE BOM GRADO COMENTÁRIOS DOS AMIGOS.












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