A burrice é uma cicatriz" (Adorno-Horkheimer)
" O ato repressor cria uma espécie de cicatriz - burrice. Quem é repreendido e reprimido , repete o último gesto que assistiu antes da repressão . Toda vez que é posto para pensar , ou que é acionado de alguma maneira para agir , ele repete o gesto de violência que o emburreceu. Ele empaca na gesticulação estereotipada. Assim, o burro , nesse caso, não é violento por ser ignorante,mas é violento por conter a cicatriz da burrice." (Guiraldelli Jr in ""A dialética do Iluminismo")
Sem contraposição a Goleman " A inteligência emocional " , nem a Gardner com sua teoria das "Inteligências múltiplas", gostaria de recortar um tema do cotidiano , bem onipresente e campo de muitos desentendimentos e sofrimentos diversos, ou seja , a burrice relacional.
Se a epígrafe é correta , logo o burro além de " empacar ", sofre de recorrência , pois volta ao mesmo lugar , toda vez que desafiado a pensar ou a agir , no sentido de senhor de si , retoma ao lugar de escravo , ou seja , o que não esquece e não perdoa , pois tem uma dívida impagável que o atormenta e por isso , não pode ser livre , a não ser para lembrar .
Mas lembrar o que ?
O gesto que o emburreceu . Como?
Há aí, um entrelaçar entre o que emburrece e o que é emburrecido , pois se não se pode pensar, menos ainda falar , pois só se fala para viver e ser feliz, o resto são mímicas , um jogo especular de mágoas e lesões de reconhecimento , em que a burrice é aquela de manter a única opção possível , ou seja , não ter opções.
O burro empaca em sua falta de opções e em seu estreitamento negativo , pois tem razão que ninguém vê , só ele . Essa é sua arma mortal , fazer desconhecer suas razões ou dogmatizá-las de tal forma , que ao mesmo tempo que é um incompreendido, é também autor de um texto que escapa às palavras , e consequentemente à fala .
Quem fala se desdiz , quem não fala tem sempre razão intocável , lugar que ninguém sabe aonde é , logo , não se chega lá . A burrice, nesse caso, não pode prescindir de seu esconderijo, lugar de suas inúmeras razões inomináveis , arma poderosa , pois se mata sem dizer o porque, jogo perverso que faz do outro, alguém que não entende ... o que jamais foi dito.
Não se questiona aí o absurdo do paradoxo , pois para o burro ele não existe , blindagem demais para reconhecer o valor do limite.
Não se escolhe as palavras, nem o momento , nem a ternura que as tornaria melhor recebidas , pois no fundo tem medo de ser compreendido e ter que vir a luz do dia mostrar seu rosto, que não vê faz muito.
Ser burro é também ser bruto , pois a brutalidade é a intimidação que tenta negar o que precisa ser dito , mata-se, mas não se confessa.
Pois senão vejamos :
O que se quer?
Amor e prestígio , duas demandas poderosas de qualquer ego humano .
Como se faz?
Escolhe-se alguém, ou se é escolhido por alguém ,que deixará de ser alguém e se tornará um foco , um foco constante de apêlos variados , pedidos de amor e sexo , de importância , de lugar exclusivo , de companhia que fará um recorte no mundo, com ela(e), o mundo é outro , justo porque é um outro .
A partir daí uma inter-penetração irá tecer o convívio , um estranha vivência de se deixar ir e de ficar , um pêndulo, que nesse lá e cá , expressa o desafio do ganho que nos obriga a se arriscar e o medo danado de perder e sofrer , a doce vertigem de que não há garantias .
Mas é verdade também, que a partir daí , este outro que passa a nos fazer parte , também desafia nossas habilidades de cativar , de atrair , enfim, de se valer a pena , eis um desafio que uma vez iniciado segue até o fim , pois no mundo dos investimentos diz um autor " o inconsciente é capitalista ", como a ressaltar que por mais que não queiramos " não há lugar assegurado" .
É como assumissemos a tarefa de nos fazer interessantes , uma qualidade da atração e da intensidade , que nos mantém o valor enquanto uma aposta que vale a pena, um esforço de aprimoramento constante que esculpe nosso mundo de dentro , à começar por nossos modos pelo lado de fora.
A fala por exemplo , o mal da boca , aquelas palavras sem consequências , a ignorância deliberada dos efeitos , fala-se e pronto , talvez algo que dito em outra hora, ou de outro modo provocaria menos estragos .
O cuidado com o não-ofender , a não-violência em níveis sutis , o ter em conta que da mesma forma o outro sente e reage , o aprender que nem tudo é tão grave assim , e que deixar pra lá , em muitas ocasiões não é vergonha nem derrota, pois não se trata de uma disputa ou de uma arena .
É incrível que ao mudar nossos modos , mudamos também a forma de ver as coisas , como se aos poucos tirassemos delas a severidade , a acidez crítica que contamina tudo , e ao mesmo tempo ganhamos em sinceridade não-ofensiva , a expressão que consagra nosso ser, o poder dizer sem matar , a palavra que celebra a vida e chama o profundo com ternura e delicadeza.
Todo analista sabe que as projeções são imperiosas e cheias de razões particulares, e que enquanto isso não quebra , a pessoa não é tocada a nível de uma reversão , um modo de reconhecimento do que lhe cabe , do que é seu e só seu , única maneira de começar a sair dessas pequenas e custosas prisões emocionais que nos infernizam a vida.
Quando um casal, por exemplo, começa a perceber o convívio , não mais como um conjunto de projeções autorizadas sómente pela neurose de cada um, mas como um modo desafiador de aprender e de se curar , começa a surgir ,o que em geral ,começa a faltar nessa ocasião, ou seja , a gratidão pelo presença companheira , o valor do lado-a-lado , que o tempo ensina aos que conseguem afrouxar o cinto de suas onipotências.
Se por um lado ninguém é de ninguém , mais uma razão para nos agradecermos ,pois sustentamos um pertencimento por amor e só , reiterando assim que estamos aonde estamos porque assim queremos , e não como vítimas do que não foi possível .
A burrice relacional começa quando esses preceitos tão nobres ,e não se vive sem nobreza, começam a serem tratados como óbvios , crime grave que arrolará muitos processos desagradáveis e sentenças serão aplicadas , ou como culpa ou como castigo , lugar onde os fracassos, ao invés de ensinarem se tornam desgraças, cujas dores nos farão chorar , um prognóstico sinistro quanto a nossa capacidade de amar de verdade e onde o orgulho foi péssimo professor .