O mundo tem alma?
Tudo tem alma , pois a alma é o que faz viver , vivemos num "mundo
almado" diz James Hillman, o grande junguiano , embora, se o termo alma
pareça ter uma conotação sutil , não é fácil em tempos espertos como o nosso,
situá-la.
No mundo cabe tudo e momentos históricos existem em que a visada de seu
compromisso é turvo e aparentemente inexistente . É como se não houvesse o
aonde chegar , pois não há indicação de sentido que não possa ser alterado ,
não há razão moral, espiritual , ou qualquer outra, que resista a uma boa
sofística , uma boa retórica que não consiga desfazer alguma pretensão mais
permanente.
O vigor imediatista cria seus lugares próprios de manifestação , seu
lócus 'voyer ', suas figurações de mercado onde os objetos imediatos ou perenes
, podem ser cotados como mercadorias de transações , ou seja , a vida é ali e
pronto .
Estanca-se o fluxo por meros interesses e subtrai-se a idéia de que
muito do que aparentemente some, pode permanecer em outros lugares que
discordam do modo como se negocia.
Podemos negociar valores capitais para uma civilidade , como podemos
regar violências que supostamente queremos combater , podemos fingir não ver
para não perder, mas não temos como destituir às assombrações que aparecem
mesmo de olhos fechados.
Há uma estranha suposição de que o mundo é exterior , um lugar de ações
e reações onde podemos nos isentar , ou se descomprometer , a figuração de que
o eu é um lacre , um lugar próprio e impenetrável , que participa do mundo por
adesão de interesse .
Esse modo de pensar totalmente extemporâneo a culturas mais
espiritualizadas , é o que nos
possibilita , por conta do poder , a mentir e se inocentar com a mesma
facilidade , ser bandido e mocinho , ser assassino e herói , num tipo de
mistura que busca confundir o olhar, por falta de um critério que reconheça que
o alto e o baixo , além de serem diferentes , pertencem à ordens diferentes.
Nossa timidez liberal , se por um lado propõe um tipo de soltura que
rompe com o tradicional , por outro, deixa vago uma série de espaços que vão
sendo costurados com oportunismos de ocasião .
Chega a ser impressionante a cara de pau de determinados políticos, por
exemplo, que mesmo incriminados , se julgam além do bem e do mal, como se o
patrimônio lapidado fosse uma questão particular .
Esses personagens anômalos são criações que resultam de nossa relação
com o mundo , quando este se torna depositário de nossas indiferenças ou de
nossas perversões particulares em âmbito restrito , uma retórica cúmplice , um
espelho de consentimentos que cada vez mais, mostra o que tem de traiçoeiro .
É incrível , como nos julgamos no direito de ocupar a cadeira dos que
foram lesados, sem nos incluirmos na dos que lesam , talvez porque sem estes
critérios , julgamos os crimes pelos seus efeitos espetaculares ou pela gravidade
de sua extensão , como se pequenos crimes pudessem passar impunes pela falta de
tamanho.
A alma do mundo somos nós , pois na rede invisível das conexões, tudo
está em tudo , nada está fora , a não ser pelo desejo de excluir , o que também
nos faz pagar um preço alto , apesar da ignorância que rege o imediatismo de
nossa contabilidade social.
Ao vibrar em nós, tem a pretensão de nos dizer o que ninguém quer
escutar , ou seja , nosso pertencimento à uma alteridade, que quanto mais se
adia mais sofrimento provoca , pois o se há o Um , ele não está na
subjetividade repetitiva com ares monótonos de cada um , e sim no entre , nos
entremeios , no ter que se dizer e pedir para ser escutado.
Este entrelaçamento é a teia cujos fios nos unem, e nos tornam sensíveis
uns aos outros , que recorta o humano enquanto um campo diferenciado e com
características próprias , uma dimensão a ser frequentada de forma consciente ,
pois aí , cada um, além de reconhecer seu pertencimento , se torna também um
outro, enquanto um espectro amplo das opções humanas.
Cada um que se consagra é um outro a consagrar , uma via de sedução e de
chamada , ou seja , uma chama que queima , que destrói , que mata o que não
deixa viver , o verdadeiro reino dos vivos , tão almejado e temido ao mesmo tempo.
"Deixemos os mortos"dizia Jesus , esses já tem endereço , pois
pensam que chegaram , vamos nós os vivos que ainda não sabemos pra onde ir , e
que temos então que viver a cada dia , como se fosse o último , sem promessas e
nem dívidas , no afã das suposições que antecipam o que não conseguem pegar .
O mundo ao renegar sua alma , perde sua interpretação maior, seu
horizonte para ver mais longe , mas ao mesmo tempo não enxerga o perto , a
proximidade para poder ver o que nos falta no outro , um interjogo de ofertas e
recepções que ao serem lapidados tornam a linguagem um dialeto universal , uma
língua cheia de vocabulários intraduzíveis sem apreço , uma língua que exige o
coração como aquele que ouve e se surprende com o que fala .
Uma escuta toda , cheia de ruídos de insetos e amores prometidos , cheia
de alegrias e dores recheadas de
penetrações , o mundo vive em mim, se refugia em mim , eu sou o mundo , no seu
baixo , no seu ventre que me reproduz , no seu alto que me reluz .
Sujo o mundo da mesma forma como corro para limpá-lo , é minha casa e
meu exílio , minha pátria cheia de nação e minha mente sem noção , o lugar onde
me amparo no corrimão e choro de doer, o que trago no coração . Ah ! Viva o
mundo , que mesmo não me chamando Raimundo é aonde estou e me apresento , ou
para ser jumento , ou um assento onde me sento , para ver quais palavras
precisam de acento , um doce cordel desrrimado pelo vento.
Minhas homenagens a Manoel de Barros , meu mestre da simplicidade
nativa, para quem as palavras foram feitas para coisar.