14.7.11

OS ENCALHADOS



A imagem do vivo que encalha é impressionante , uma angústia do que foi interrompido , um movimento que sabe-se lá porque, empacou e nos desperta o desejo imediato de recomeçá-lo ou recolocar através de algum ato nobre à condição que possibilite retomá-lo .

Uma baleia , um golfinho , imagens comuns que nos frequentam têm um poder aglutinador espetacular , surge gente de todo lugar pra ajudar , um esforço comum pra que a criatura recupere seus movimentos e volte pro seu habitat , dando a nós o sentido de recuperação do fluxo, algo como a vida continua.

Uma alegria e um alívio que nem sabemos explicar exatamente , como que em algum nível do inconsciente nos identificássemos com cada etapa do processo , desde de seu sucumbir provisório, caso seja, até a liberação dos gestos , o vigor do estilo , a beleza das nadadeiras indo com disposição em direção ao mar .

É como se estivéssemos indo e soubéssemos aonde chegar e de repente , pronto , encalha-se, nem pra lá nem pra cá , um misto de impotência e aflição , uma imposição por falta de posição , que nos submete ao estranho , o que não foi convidado, e nos rouba o movimento, trazendo a angústia da incerteza , a imprecisão de nosso destino.

Encalha-se em qualquer praia , ou seja, na do amor , no dinheiro , nos propósitos , nos sonhos, enfim, aonde se quer chegar corre-se o risco de encalhar.

Mas se por um lado há o encalhe , por outro há o encalhado , à condição e a criatura , um misto alternado de limites e desafios , uma imprevisibilidade dos resultados, um interjogo onde busca-se remover o que impede e por outro sonha-se com a soltura do que estancou.

A questão maior é quando numa visada mais ampla nos damos conta que os encalhados são muitos , gente que nadou com esforço , gente que sonhou com o prometido , gente que quer pertencer , gente que quer amar , que quer casar , que quer trabalhar, gente que quer o seu lugar, gente que quer ser gente .

Num livro recém lançado sobre Bombaim , a cidade mais populosa do mundo, o autor mostra a revolta de uma juventude traída em seus ideais , que depois de receber toda educação formal com vistas ao mercado descobre que não há emprego pra todos , corroborando a tese de Jeremy Rifkin sobre uma sociedade sem empregos.

Por outro lado Boman em seus diversos livros sobre a modernidade líquida traduz de forma sensível,todas variações no campo do amor , principalmente, quando se trata das implicações que o amor suscita nos protagonistas quando se trata de se comprometer , o que trás a idéia de algo perene . Se não podemos descartá-lo, é melhor não se comprometer , um mecanismo que tem deixado na praia dos encalhes um monte de sonhos de casamento , um imenso desejo de pertencer à ordem de reprodução da vida.

Chora-se e angustia-se muito com a amarga impressão que o tempo passa e nada acontece de forma mais profunda , a vida presa histericamente no raso , a falta de identidade da dor que espera o acontecer e as ofertas esteréis que buscam disfarçá-la , sofre-se sem poder dizer porque , já que dores da alma são invisíveis.

E são invisíveis não porque não tenham nome, não , não é isso , e sim porque hoje é vergonhoso chorar pela alma , o lugar onde as permanências vivem e reinvidicam a dimensão do profundo,pois uma vez passado o pacto das histerias coletivas, busca-se o que é singular , o modo como as realizações fazem a vida valer a pena .

Mas diz uma cliente “ pra que falar de sentimentos , se isso pode ser uma arma contra você ?” , e isso tem se tornado um lugar tão comum num mundo violento e cheio de distâncias , que embora os sentimentos sejam o alimento de qualquer vínculo , foram relegados a uma categoria menor, inclusive, na Psicanálise.

Não há propostas no amor que possam prescindir do que se sente, o modo não elaborado e espontâneo que fazem que o convívio seja um lugar de espantos e descobertas mútuas , um alegrar-se juntos , a inocência que mesmo relegada , é a única forma que nos permite não fazer dele,do convívio, uma grande paranóia.

Não temos planejamentos sociais que nos de o alcance do que virá , gerações que chegam, renovam , pois trazem o novo , os ímpetos e o imenso desejo de aprender e conquistar, um sangue novo , o entusiasmo juvenil a ser trabalhado e esculpido em seus próprios termos, a renovação da própria vida.

Não, insistimos em ser velhos e viscosos , o osso é nosso e pronto . Típico raciocínio debilitado, pois ao perdermos o espiríto comunitário, deixamos de ver o futuro em quem nos sucede , a visão tosca e burra dos que não querem morrer em nada.

“O poder não se passa , toma-se” dizia Foulcalt, indicando que tudo nos fará guerrear , pois não se vive sem poder . Passar o poder para quem se prepara sempre foi o modo das sabedorias antigas , um ritual sábio e cheio de amor , pois os que recebiam se comprometiam a usá-lo em prol da comunidade , sua gente , sua tradição seu povo querido .

E sabia-se a hora de fazê-lo , pois tudo amadurece e não convém perder o tempo , senão estraga,algo como a fabricação do vinho , tempo da colheita , sumo propício a próxima etapa.

O que fazemos hoje? Um tipo” Deus dará” que só faz nos atormentar , um falange de gente encalhada em todos os níveis da vida , um povo orfão de oportunidades e de propósitos que tem custado alto aos governos e as políticas públicas , pois parados, custam muito mais,e uma enormidade de corações sedentos , buscando acasalamentos para serem fecundados e engravidados de amor sincero.

A vida é amor e trabalho dizia Freud , dois pilares imprecindíveis da dignidade da criatura humana, e manter essas condições, é possibilitar que a vida ofereça seu sentido maior, sua ordem de grandeza ,que se refaz a cada passo conquistado. É como se a cada avanço , novos desafios se apresentassem, nos dando o gosto pelas conquistas , “Eu sou minhas conquistas” dizia um amigo querido . Mas quando os desafios não apresentam suas relevâncias , e se pasteurizam ou se tornam desesperos , uma ameaça começa pairar , ou seja, ou paralizamos ou se atiramos de qualquer jeito, a figuração bipolar que marca o psiquismo moderno.

Queremos ser feliz , sem essa ficção ontológica, começamos a não saber o pra que, se não trabalhamos , se não amamos, o sentimento ontológico de mutilação começa a nos corroer , uma estranha carência de si e do outro , a falta do gosto de ser importante para alguma coisa que seja.

Deprimimos, o valor próprio é barateado como auto-estima de livro de auto-ajuda, sofremos da acidez de precisar e não conseguir pedir , uma tristeza profunda que nos abate a alma, como se nossos sonhos primordiais de realização, ficassem tão distantes e pálidos que temos medo de confessá-los.

Trabalhamos para construir e nos construímos pelo trabalho dizia Marx , e “uma vida sem amor é uma vida morta” ensinava Osho , ora uma visão que não tenha isto em conta é obsoleta e engendra um tipo de violência niilista, a violência do nada , do coisa nenhuma , o pertencer a inconsistência , uma falta de crédito no que se quer , um esvair-se do que se acredita.

Todo poder é uma direção para luz ou para sombra , um gesto que tem custado caro e muito arrependimentos, quando chega à consciência do que se poderia fazer para que tudo fosse maior e mais bonito, e se ficou preso num nível menor , o que não foi bom nem pra si, nem para os outros.

Os encalhados fazem apêlo e têm força , pedem chances e oportunidades para se incluírem, participarem e realizarem , denunciam um tipo de perversão coletiva , um sistema com critérios obsoletos com conceitos ultrapassados , que busca manter seu modo estabelecido , às custas dos que querem e precisam chegar.

A questão dos imigrantes , a xenofobia sacial , as supremacias étnicas , tem trazido tanta violência e tantas perdas , com dores tão indescritíveis , inclusive os genocídios , que talvez já estamos imersos num tipo de loucura assassina e auto-destrutiva , cujas medicações só estejam num tempo futuro da consciência .

É preciso abrir e oferecer com justiça e com amor , pois só assim teremos argumentos para contrapor a ordem sintomática, que tem produzindo sujeitos que tangenciam os vínculos sociais, por não se sentirem comprometidos com o cinismo que se tornou uma epidemia , a vida subjugada ao modo de desempenho , uma fábrica de artistas , cuja arte maior é mentir como se fosse verdade , a máscara como se fosse identidade.

O poder , em geral, tende a ser anacrônico e repetitivo, uma rede elaborada de acomodações e prestígios particulares , e se for protagonizado por gente coisinha fica crônico, e só produz atrasos,a condição para ignorância apaixonante , o sintoma como deslocamento da verdade,       a cegueira que nos permite tornar indiferente o que é maior.




















Há ou não inveja do pênis?