29.1.12

A vida e a morte , as duas faces do destino

Há um momento tão único e possivelmente tão indescritível em nossa experiência humana , que é raro se reportar a ele, embora cada um de nós a seu modo , talvez já o tenha vivido.

Me refiro ao momento ímpar e incomparável de quando alguém querido se vai , aquele momento onde o fosso se abre e não há mais volta , pois já não há o que possa ser feito.

Dependendo de quem se vá , da importância que tenha na estrutura geral de nossa vida, o vácuo, é por vezes, desesperador , pois ao mesmo tempo que temos a constatação de que acabou , imediatamente , nos vem o que será de nós sem a pessoa .

Essa vivência acre e agudíssima , pode durar um tempo incontável, mas com certeza é onipresentemente dolorosa, onde nem o sono com seu poder reparador pode nos confortar. É como um roubo profundo, cujo ladrão não tem rosto , e em relação a qual não temos chance, e tudo que cultivamos é levado, sem nos perguntar nada.

Se é verdade que nosso psiquismo vive num deslize associativo , esse momento é de quebra total , ou quase total , talvez uma defesa contra possibilidade de enlouquecermos , como um negação profunda de tudo que a realidade nos exige para viver .

Isso parece tão verdade, que muitos desistem junto com quem foi, num gesto concreto de terminar com sua vida, ou num tipo de desistência lenta que a destituí um pouco a cada dia, um processo tão penoso, tão mórbido , e tão sôfrego que parece que a pessoa encontra ali um derrota , que diga-se , não aceita de jeito algum, de não poder manter vivo seu ente querido.

Muitos dependendo da relação que tinham , sentem-se culpados ; outros não concebem que possam continuar vivos se o amado se foi , perguntam-se se não era ela que deveria ter ido no lugar , e podem até proibirssem de viver.

Mas tudo é tão profundamente triste , e como vivemos uma vida entrelaçada , ao ver um familiar mais atingido apagar-se , o grupo familiar sofre mais ainda , tanto pelo que foi como pelo que fica , um tipo de estrondo onde a vida não será mais a mesma .

O psiquismo reage , na tentativa de fazer a vida continuar , mas somos criaturas de valores e estamos submetidos à um campo de significações , e sabemos perfeitamente o que nos acontece quando tudo perde o sentido .

A identificação com o morto pode se exacerbar, e de tal forma, que busca-se um meio de que viva através de nós , é como se assim alterássemos secretamente a força do destino , e se não foi possível mantê-lo no corpo próprio , o nosso corpo então será sua residência e seu psiquismo se expressará pelo nosso.

Óbvio, que dependendo da força disso , a loucura poderá acontecer e surtos ou crises psicóticas mais graves poderão se manifestar , embora o mais comum , talvez seja , a entrada num processo depressivo e depreciativo tão intenso , que vislumbra-se ali um suicídio inconsciente , um desejo cheio de sinais de morte.

O traço marcante é a solidão que a pessoa fica , um tipo de solidão refratária e quase nada interativa , com poucas respostas às solicitações dos demais , observa-se um mundo que se apaga , um escuro regido por uma dor emudecida e cuja revolta não encontra outra linguagem para se dizer .

A medicação busca aliviar e dar conforto , mas sabemos que não faz milagres e como fazer a pessoa reagir ?

Essa dor, vi principalmente, em mães que perderam seus filhos queridos e se não estou errado , uma das dores mais lancinantes do catálogo humano , uma dor profundamente comovente e deseperadora , onde qualquer argumento parece paliativo de ocasião .

Vi essa dor numa reunião para qual fui convidado de mães que tiveram seus filhos assassinados , e confesso que nunca fiquei tão oprimido , numa total ausência de linguagem, onde tudo que eu pensei em dizer me parecia inócuo e desrespeitoso .

A dor real demais, faz a linguagem sucumbir e desaparecer , não há naquele momento uma moral de sustentação que não incorra em dizeres superficiais , ou em ritos que convocam esperanças para um depois , consolos que não consolam , a sujeição ao destino que nos coloca como protagonista do indesejável .

No entanto , convém perguntar , e aquele que morreu? O que acontece?

De pronto , nos convém, o destino do corpo enquanto mutação biológica , o que vai ser absorvido pela terra e se transformar , já que segundo Lavoisier é assim, "nada se perde tudo se transforma", mas é só?

Aqui o terreno é turbulento ,cheio de debates arraigados e de poucas concordâncias , talvez muitos ódios, aí estejam . Mas porque?

Porque decretamos , um édito da razão dita superior , que a vida é o que se vê , e o que se vê com os olhos do corpo , um confinamento aos limites de uma matéria , cuja densidade que serviu como inspiração aos materialistas , vem sendo obrigada a re-visões importantes do ponto de vista conceitual.

O Ocidente , ainda marcado por uma Idade média obscura e dogmática , trás em si, as dores de seu sequestro intelectual feita pela Igreja Medieval , onde o saber dispensava o pensamento , considerado perigoso e subversivo aos interesses do poder do Clero Romano .

Morte aos hereges e aos pensadores , paga-se o tributo e acumula-se o gozo tão profano e tão indecente , talvez como hoje, que a espiritualidade , o saber que só a transcendência oferece, foi considerada junto com todos os discursos de poder , uma ignorância de uma plebe pouca esclarecida e pouco confiável , como credenciais de uma dimensão que não alcançou o brilho de uma razão inteligente.

"Religião ópio do povo", diz Marx, ou "uma crendice infantil contra o fantasma do desamparo" corrobora Freud, dois expoentes da razão moderna , que me parecem um tanto apressados.

Há na religião ,e diga-se , sou ateu , um ateu espiritual , se é que existe isso ou então passa a existir , um desejo profundo de uma re-ligação que em sã consciência (sic) não é possível negar.

A dor profunda ao mesmo tempo que nos rasga visceralmente , também busca uma conexão , um entremeio decisivo, para vida poder seguir adiante , um tipo de socorro que com tudo e apesar de tudo , nos indica que vale a pena prosseguir , que não podemos combater uma dor com outra dor pior ainda , e que não nos convém nesse momento, nenhuma filosofia do azar.

Chega ser impressionante como aos poucos, tudo se cala , teorias , sistemas, doutrinas etc , como se tudo fosse se rendendo ao inexorável e nos deixando entregues a própria sorte , ou seja, tudo que está fora do alcance ou do raio de ação dos saberes estabelecidos .

Cala-se o filósofo, o médico , o psicanalista , os doutores em geral, os mesmos que sabiam tudo sobre a vida e que pouco oferecem sobre a morte . O que houve?

"Está fora da nossa esfera" diz um , fala que representa um protocolo geral , e que nos revela a impotência de nosso" falo cultural", ou seja, só podemos lidar com o que sustenta e se presta à potência de nossos saberes . Uma "douta ignorância" a là Nicolau de Cusa , que tem nos custado caro , justo aonde mais precisamos , isto é , aonde a vida nos confronta com nossa fé .

Mas fé , o que é ?

Veja aí a definição segundo nosso dicionário eletrônico : "
(do Latim fides, fidelidade e do Grego pistia[1] ) é a firme opinião de que algo é verdade, sem qualquer tipo de prova ou critério objetivo de verificação, pela absoluta confiança que depositamos nesta idéia ou fonte de transmissão.

E observem os dizeres na estátua da fé :O véu simboliza a impossibilidade de conhecer directamente as evidências"

Mas a dor é a própria evidência , e num momento único vive-se a relatividade dos demais significados , e abre-se um apêlo vindo das entranhas solitárias de cada um onde parece haver uma ultrapassagem de qualquer fronteira , um ímpeto para o desconhecido , a projeção de uma continuidade, cuja ponte somos obrigados a construir.

Viver com fé, é viver em ligação com o que não existe , é uma disposição para se viver de forma ampla , considerando tudo, sem se deter apriori em nada , tendo-se em conta inclusive , que a direção é rumo ao que não existe , lembrando que tudo que existe , um dia não existiu .

Viemos do que não existe para existir e existindo retornamos a outra forma de existência , que a princípio pra nós não existe , não porque não exista, mas porque não temos como reconhecê-la.

Mas sempre é bom lembrar, que pra nós , o que existe é o que podemos reconhecer, e o que podemos nomear pelos sentidos ou pelos conceitos estabelecidos, mas a morte como experiência não se presta a isso.

Mediante a morte , aquele momento singular , há um turbilhão de dor e de interrogações simultâneas , que é impossível se manter o encadeamento ordinário do psiquismo . Afora , se quem morre não tiver importância , o fosso que se abre é uma vivência comum , ou seja, todos perdem e são afetados, uma estranha concordância com Buda, sobre a impermanência de tudo que existe.

Vive-se a questão : E agora? o que acontecerá?

O cemitério tem sido o enderêço oferecido pelos sentidos , destino para o que se vê e intensa angústia para o que não se vê , um sentido terminal que contém um sem fim de apêlos metafísicos e a convergência controversa da questão maior , ou seja, há algo além ?

Como é possível que todo sólido , tudo que sempre nos pareceu firme e inseparável, tudo com o que sempre contamos , possa terminar assim ?

A fé, em geral, não funciona como recurso de última hora , ou seja , não é uma crença contingencial onde não se tem nada melhor para se oferecer , é antes um testemunho mediante a própria dor , de um próposito que nos permite o reconhecimento de um desígnio maior , a ordem do destino , que nos torna protagonistas do que não escolhemos e somos obrigados a viver.

Abre-se o profundo , naufraga as superfícies , nossa vida e de quem morre não poderá mais ser a mesma , uma transformação em todos os níveis , a busca de um universo em que os mortos continuem vivos e renovados , onde o corpo físico não é um critério único para identificação da vida e o desafio pra quem fica de trazer à morte para vida, já que pra todo aquele que morre , lembramos que nosso destino é o mesmo.

 

Próximo artigo A VIDA CONTINUA , A MORTE COMO PORTA PARA O ALÉM

 

 

 

 

 

 

Há ou não inveja do pênis?