19.6.11

O FEIJÃO COM ARROZ : UM CASO DE AMOR

Crônica de uma dupla bem-sucedida

"A elite cultural distanciou-se do resto de nós pelo gosto artístico seletivo e por critérios estritamente definidos-em clara oposição ao nosso gosto sem discernimento e caracterizado por flagrante oposição de critérios. Foi essa oposição que sustentou a divisão entre a "alta cultura" e a" baixa cultura" (popular ou de massas ) Pierre Bourdieu citado Boman em " 44 cartas do mundo líquido moderno".
Eis uma reflexão sobre como os símbolos da baixa cultura ( feijão com arroz) promovem uma militância subversiva e alça às mesas nobres , num tipo de socialismo generoso e com armas do requinte e do paladar.

O FEIJÃO COM ARROZ :
Na verdade não é uma mistura , não , de forma alguma .É dessas combinatórias onde a vida resolve se juntar e mostrar que dá certo,uma assertiva da atração .
Em geral , o feijão por baixo e o arroz por cima , sem dúvida mais elegante do que o feijão esparramado por cima , meio lambuzando o cenário .
O arroz sendo branco realça bem a superfície enquanto o feijão dá um tipo de vinil irregular ao fundo , ao mesmo tempo que assanha velhas reminiscências transgeracional e diga-se , tendo como senha do tempo, especialmente o tempêro .
O tempêro , a velha magia que sempre moveu o mundo, talvez porque em contraste com o de sempre, chamava à diferença e o aguçamento dos sentidos,o prazer oral , para muitos o único prazer dos Deuses , o prazer por excelência , já que começamos por ele e nunca mais saímos.
Ao serem colocados no prato garantem o substantivo , garantia do básico como alicerce , como se a arquitetura dos detalhes , só pudesse ter seu realce no depois , o requinte do a mais , sempre bem vindo , mas um tipo de agregado mais superficial , que abre a brecha para uma nova combinação.
Os agregados , saladas, proteínas como carnes em geral , as massas , ao mesmo tempo que representam uma identidade histórica , sofrem um tipo de sujeição particular quando há o feijão com arroz , que compassam o fundo , o gosto primário, onde o Brasil é terra.
Saboreia-se a terra de uma forma única , derivações do coito brasilis, onde o dois é a consagração da soma, pois , a idéia de ambos , eleva a um terceiro que só a boca entende , pois eis ali a passagem consolidada do líquido para o sólido , uma entrance na magia familiar.
Compete-se pelo melhor feijão , aquele que de fato é o falo , aquele que faz falar ," ah! que delícia" , a plenitude do preto em geral , aonde o branco numa inversão dos pré-conceitos faz a figuração coadjuvante , mas primordial , uma submissão consentida e humilde dos que servem para que outros brilhem.
O arroz é assim , embora tenha sua magia própria e um cardápio de requintes , aqui em nosso caso , é aquele que se empresta para ser consumado , o servo nem sempre citado , mas indispensável , a noiva deflorada a cada prato , onde os méritos são reconhecidos não pela sua oferta , mas pela performance do noivo.
Mas a combinação , que não é uma mistura , como parece a primeira vista , produz um encanto que passa a a ter com a fome uma relação diferente pois chega antes , ou seja, se constitue num tipo de figuração onde a fome é induzida apenas como acesso ao gozo.
Se come sem se comer , um ato sem determinação sólida , uma liçença virtual que o imaginário permite e concede a quem merece , e o feijão com arroz é assim , o um com outro, uma alteridade emancipada , um coito silencioso e com cheiro doméstico de família.
O feijão serve como marca emblemática de talento inesquecível , pois, saber-fazer feijão com tempêro e cheiroso , ah! leva o título campeão , e se inscreve no livro das façanhas culinárias.
Ah ! este é bom ! mas não é igual ao da minha mãe , ou da minha vó, ou da empregada, ou seja lá quem merecer o título , mas será esse feijão campeão que se estabelecerá como medida para os demais , num tipo diploma permanente e ao mesmo tempo de possíveis saudades acalentadas com recordações de cuidados e carinhos .
Lembro-me por exemplo , e esta parece ser uma questão para os fazedores de feijão , que o louro em folha de repente aparecia , como um tipo de intruso , bem vindo para uns, não para outros.Depois veio o em pó , o louro em pó, que alguns é uma heresia ,e também os têmperos industrializados que equalizaram a cozinha moderna com suas próprias fórmulas genéricas , já sem a alma dos segredos que sempre marcaram a arte culinária.
Essas mudanças aparentementes úteis , acompanham a transformação do tempo considerado hoje do ponto de vista prático , ou seja,não há tempo a perder , come-se o prático e dispensa-se as liturgias e ritualistícas das dedicações , uma perda que os restaurantes tentam aproveitar cobrando alto o preço do resgaste .
Os chamados acompanhamentos também entram numa certa relação de afinidades populares , e no nosso caso , por exemplo, o bife com batatas fritas , uma outra dobradinha muito apreciada que compõe um quarteto extremamente apreciado por muitos.
Feijão com arroz e bife com batatas fritas, minha nossa , aprende-se lá na infância e confirma-se o conceito de fixação , tão cara a Psicanálise , um prato duplamente cheio , tanto para os psi , como cheio para o desejo de que não acabe , que o prato esteja cheio mesmo.
O arremate final também é espetacular , pois guarda-se aquele pedaço final do bife com algumas batatas, caso de morte caso alguém chegue perto , é o fragmento final , guardado como símbolo do que falta para a completude , a satisfação do uno , a dimensão mítica de que não se precisa de mais nada , a experiência de satisfação revivida momentaneamente , o retorno do seio pleno.
Por outro lado não há comida que não passe pela energia dos que fazem , e mesmo em restaurantes observa-se o zelo de quem faz , pois parece que o alimento tem uma dimensão que só abre para além dele mesmo quando recebe algo do coração do feitor.
Está em jogo o alimentar, enquanto um gesto materno , um feminino cuidador , uma reverência solene que nos sugere em muitas ocasiões comer calados , como se a boca naquele momento fosse tomada de uma recepção única e concentrada , onde as palavras se recolhem para apreciar , um tipo de coro grego que sublinha o mais importante.
O jabá com girimun , também é uma outra dupla famosa , embora menos cotada, mas de grande prestígio , a carne seca com abóbora , uma combinação também de beleza , pois os secos se combinam com úmidos, assim como os queijos se combinam com goiabadas, numa conjugação que colorem à neutralidade da saliva e testificam que o desejo também é fruto do olhar.
Essas composições harmoniosas também nos levam aqueles lugares onde podemos sonhar com encaixes , suposições relacionais que quando se juntam tornam ainda melhor o depois, talvez mostrando que esse junto têm seus méritos aonde acrescentam e se destacam como unidade assimétrica.
E embora sejam básico e por muitas vezes sinônimo de povão , essas dobradinhas figuram o imaginário alimentício como despojamento , como simplicidade , como delícias, onde as classes sociais se encontram , talvez preconizando uma possibilidade dos cardápios, além do dinheiro, serem também uma mesa comum.
O feijão é o feijão , bem como o arroz , mas juntos destacam um momento que sózinhos não poderiam , e ao proporcionarem tamanho prazer se tornam inesquecíveis , um apêlo da boca quando se sente só.
Valeu.
Homenagem ao meu amigo Dr Wilson Soares Câmara, bom gourmet e apreciador de feijão com macarrão.
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

Há ou não inveja do pênis?