A REVOLUÇÃO DO MÍNIMO
Habituados aos anseios pelo maior , seja lá o que isso
queira dizer , esperamos por algo que venha a mais , que nos traga sensação de
ganho , essa economia que o capitalismo só faz reificar e se valer , esse
preenchimento quase compulsivo ... do nada.
Vida moldada por essa troca perene , entre o que sai e o que
entra , vivemos aí, os ganhos e os prejuízos , que validamos por algum critério
particular , que sequer conseguimos explicar pra gente mesmo , por exemplo ,
uma sensação de perda é o suficiente para comermos a mais , ou gastar não
importa muito com o que , ensaio de uma reposição simbólica do que se foi .
Essa economia que nos torna contábil a todo tempo , rege
nossas transações e dependendo, dão uma concretude desmesurada ao que buscamos
, de tal forma que nos arvoramos nessa busca , dando a ela um estatuto quase
vital.
Dependendo do valor que esteja em jogo , a própria vida
entra na roleta , e pode ser a última moeda a se apostar , como se, ao não
suportarmos perder , entregamos o perdedor , única alternativa de uma
pretensiosa fantasia de acabar com o
jogo, acabando com quem joga.
Lacan diz do mais –gozar , ou seja , sempre queremos mais ,
pois o inconsciente é da ordem do capital , que sempre quer mais , por isso é
capitalista . Esse a mais é o moto-perpétuo do desejo , esse insaciável que
rege a economia de todo movimento .
Mas, inseridos nesse sistema somos consumidores de todo tipo
de fetiche , seja na roupa , seja no sexo , no cigarro , enfim , no que for ,
lá estamos numa oralidade quase acrítica , que põe pra dentro tudo que é
sugerido , sem nunca perguntar o quanto custa sair.
Diria mesmo, que criamos uma oralidade própria aos tempos
modernos , tempo de consumo, dos insumos rápidos de pouca digestão , que afetam
profundamente o aparelho gastro-intestinal , considerado o segundo cérebro do
corpo .
Sem entrar em reflexões psicossomáticas , o fato é que , ou
sofremos de desarranjos, ou de constirpações retentivas , expressão de
distorções energéticas de nossos apegos ao impegável, ou de nossas expulsões
rápidas , talvez traídos pelo que entrou sem merecer.
Sempre me pergunto se o quanto o ganho , ao se tornar
elemento chave , pode nos fechar ao invés de nos abrir , o quanto nos tornamos
sujeitos a velha fórmula de ganhar e não levar , agonia constante para nossas aflições
possessivas.
Penso que a sensação de ganhar pode ser fictícia se não nos
leva adiante , um passo a mais , uma amplitude diferenciada para melhores
opções, pois afinal , o que significa ganhar e estar sempre no mesmo lugar?
Precisamos nos sentir melhor , uma justificativa para nossos
investimentos , por vezes tão caros e sofridos que não deveríamos nos contentar
com pouco , um a mais , mas com qualidade , uma estética mais apaixonante e
desafiadora e não meros fetiches inúteis que só fazem nos engordar, e se sentir
vazios depois de dois minutos.
Se o ganho for a palavra de ordem ,a celebração se sacrifica
já que é contemplativa , pois nos dá um ganho que não pode se contabilizar nos
registros usuais , é um ganho como a arte , um ganho de um sublime a ser
deslumbrado e não possuído e guardado.
Esse ganho da celebração quando se abre na alma , nos coloca
frente ao extra-ordinário , onde se ganha com o menos e não com o mais , um
des-possuir-se ao invés de possuir e
conter, um largar para permanecer mais vazio ao invés de entupir-se e querer
mais para se preencher.
É justo aí , que descobrimos todo valor do mínimo , o valor
do que se tem e não só do que se quer , um louvor de gratidão aos invés dos
protestos insaciáveis , a beleza nas mínimas manifestações que , em geral são
despercebidas .
Num vídeo recente feito por um canal de televisão se não me
engano , filmou-se a vida desde os embriões até seus corpos adultos , um
trabalho de rara beleza e de silêncio fecundo onde nada atropelava nada , como
se cada etapa soubesse seu lugar e hora , sem brigas desnecessárias , numa
interdependência compassada de mesmo sentido e direção.
A filosofia moderna nos ensina que não temos natureza , que
não temos essência , logo somos nada e podemos ser tudo , um laborioso trabalho
de decisões e escolhas , embora curiosamente , algo me faça acreditar que
estamos fadados ao Bem.
Se não temos a harmonia a nosso favor , podemos então ,
apreciar o valor do Bem em comum, esse gosto ético-estético e espiritual de
estabelecer direções para nossa energia onde a vida se faça melhor pra todos.
Se há aí, algum tipo de queixa de ter sido deixados a sós
pela natureza , que não nos dotou de instintos que nos dirija e nos mostre o
caminho, por outro , nos deu o espírito da aventura , da graça de arriscar e
descobrir , de ter o poder de discriminar o quanto o Bem nos eleva para uma
plataforma de maior visada, onde o ganho mesmo , é o que pode ser um patrimônio
comum.
A vida nos dá a cada dia e recebemos cheios de
reconhecimento , algo que relegamos a uma religiosidade das religiões, mas que
só nos coloca em mais-erro , ou seja, quanto mais aderidos, mais pegados e
pesados , a vida como uma carroça para os sonhos , estranho contraste com a
velocidade dos fetiches.
Nossa religiosidade é a celebração do que existe e nos é
oferecido sempre ,uma metáfora de grandezas livres e desimpedidas e por isso livres de medidas estabelecidas,
sem pertencerem a um sistema específico de valor e reconhecimento.
É um patrimônio de todos, sem preço estipulado pelo homem ,
é o gozo não-material dos sensíveis, que vêm a beleza que desabrocha sem
alarde, sem cobrar nada a quem quer que seja, a não ser que vivamos com olhos
de ver , já que o homem morto é o que mais interessa, pois é uma presa mais
fácil .
É o homem que não vê o aqui , pois é lá que o objeto está...
mas lá onde?
Na sua fantasia de apropriação , no seu querer ser dono e
mandar sempre , na mera revolta de não se deixar capturar pois é livre ... para
ser escravo , o gozo que Nietsche abominava , pois era dos fracos e
ressentidos.
O homem morto pede a sugestão pela recusa de ter que
descobrir e decidir , e enquanto in-decide , pisa nas flores pelo caminho , não
se emociona com as estrelas e não vê poesia ao seu redor , menos ainda quem lhe
precisa.
A revolução do mínimo
é para poucos , os que buscam o gozo da qualidade sensível , cheios de recheios
naturais , numa postura de quem vive a favor e que mesmo sofrendo do querer
mais , que seja o melhor para todos.
Para isso revê suas medidas para o que lhe convém , um
direito de ser-feliz , sabendo que não é o muito sua senha, e que seu pouco é
sua leveza , já que seu desprendimento é o seu maior gesto de amor para consigo
, não como uma indiferença , mas como uma paixão .
O mínimo nos dá intimidade , está nos cantos , nos prazeres
intensos e gratuitos , seja no café , no banho, no papo , nos sortilégios do
imprevisto , sempre na forma de uma gratuidade que provoca o espanto do custo
dos prazeres vendidos.