15.5.11

O dia que vi a cara da morte e ela me dispensou

Tudo pronto para as férias .
Tínhamos decidido retornar a Floripa, pois ficamos impressionados com sua beleza .
Conhecíamos um casal lá , donos de uma pousada e ela carioca tinha o maior prazer em receber-nos. Acertamos tudo pelo telefone, fizemos os depósitos e partimos .
Aliás , convém dizer que fujo do carnaval e em Floripa tudo é tranquilo , de formas, que atendia o meu desejo ,de minha mulher e minha filha , além de uma sobrinha que sempre nos acompanhava.
Eis uma festa que me sinto pouco a vontade . Já era freudiano, antes de conhecer Freud, e me espantava o comportamento da turba. Atitudes, que jamais seriam tomadas em outro momento, parecem sentir-se a vontade, nesta época .
Na fenomenologia do carnaval destaco dois aspectos que me parecem determinantes:
primeiro o consentimento , é preciso consentir e ter a fantasia de que o carnaval é a senha do consentimento , em geral, pra tudo .Na fantasia parece que não há o que não possa , tudo pode.Uma des-repressão súbita de tudo que faz força para se conter , provavelmente.
Talvez , uma forma de testar a relação custo-benefício da civilidade e neste lugar , realmente parece que é a repressão o pilar da vida social , como queria Marcuse , o filosófo da contra-cultura.
O outro ítem, é o esquecimento , algo como esquecer quem sou , ou mostrar o que não sou , ou mesmo um protesto de ter que ser quem sou ou mágoa do que não sou.Muitos acertos simultâneos na ordem libidinal, parecem ser feitos aí.
Sem estes dois aspectos o carnaval , principalmente em cidades mais carnavalescas não se sustenta. Liberação é a palavra de ordem e junto , o que é bestial .Libera-se a chatice bêbada, o mau gosto das palavras, as mãos rápidas e invasoras , um certo sacrifício estético que abre passagem para o vulgo , já que não há nenhum problema em ser vulgar, afinal hoje é carnaval, pode.
Os intelectuais, que em geral ,pouco participam do carnaval , festa do povo , costumam dizer que o carnaval é um brado de guerra contra opressão .Sinceramente , que saco de brado . Não me parece que nenhuma ordem mudará desta forma , pelo contrário.
Mas é uma festa , que curiosamente permite uma certa alteração do estabelecido e sendo uma festa do imaginário , contém elementos interessantes , como a possibilidade de ser outro .
Homens adoram virar mulher , um exercício misto de curiosidade e zombaria , ou então gay.
Se o carnaval não acabasse , o mundo que segundo minha amiga já é, seria gay, talvez um alerta contra uma certa masculinidade decadente, onde a afirmação viril sem gosto estético, é a prova de que o imaginário também tem seus requintes para sustentar o gozo.
A festa do arco-íris , uma homenagem ao meu amigo Juão , autor do livro “ Mutações do arco-íris”, que me contestou quando coloquei no início do blog, que era”machu paca”, sem observar o sic?, na sequência ..
Em o “Sexo dos Anjos” ,M.D.MAGNO, nos convida à suas incursões sobre o terceiro sexo, uma aposta que me parece mais para um terceiro lugar , um neutralidade entre o que chama de alelos , ou seja , mais uma suspensão da linguagem do que uma questão anatômica.
Às vezes, me atrevo a supor que o determinismo da forma , enquanto anatomia , é repressivo,e não fosse a ordem cultural, reificar, como dizia Marx, e sei lá como seria.
Mas para não ficar só no lado crítico, acho o humor um ponto alto no carnaval . Coisas criativas, fantasias inimagináveis , ídolos ficando bem pertinho , políticos des-mascarados embora com máscaras , uma folia de combinações sem compromisso lógico, e talvez , um exercício de non-sense coletivamente aprovado. Sem dúvida , alguma sátira inteligente no ar.
O pulsional libidinal , a baixaria , o tô nem aí , talvez tenham sido incorporados ao carnaval depois , seguindo as tensões de uma civilização ,que cada vez mais parece decadente ou líquida como quer Bauman ou uma transição para algo melhor , segundo alguns. Façam suas apostas.
OBS : Dois dias depois de escrever este relato , Jabour na sua crônica no jornal Globo , diz , numa espécie de reconciliação com o carnaval, depois de condená-lo muito tempo "Sem comparações esquemáticas (relativo as reações na África do Norte) sente-se o renascimento de um desejo gregário , até de contato físico entre as pessoas , uma explosão de liberdade e de encontro que nos leva a concluir que houve uma democratização da convivência , um irresistível desejo de  existir em comunidade". Quanta coisa viu Jabour , minha questão é porque reduzir tão nobres manifestações, então, ao carnaval? Porque não operar uma ocupação pacífica das ruas no sentido de expandir a concepção de nosso viver , incluíndo aí o cuidado, a estética, o gozo coletivo, a preservação do patrimônio, as estratégias políticas pra quem vive na rua , enfim, aproveitaríamos esta expansão gregária e utilizaríamos estas forças a nosso favor.Pena que quarta -feira de cinza , tudo pareça tão egocêntricamente normal.
Este furor que se tornará melancólico logo, poderia ser uma constante manifestação criativa, uma folia permanente de vida e criatividade, uma ação não só catártica mas a consecução de novos laços e alegrias de se celebrar a vida, celebrando o outro no que tem de melhor.
Evitaríamos assim , um tipo de escrotização do amor enquanto objeto anônimo , sem sujeitos nomeados que desaparecem como aparecem.
Fico me perguntando se não é esta fugacidade o que tomamos como gozo, um gozo de objeto rápido sem que os sujeitos tenham que apresentar suas feições?
Este tipo de cogitação em mim lá estava sem palavras desde sempre.
Viver é aprender a falar ou a se dizer. Que difícil , diga-se.
Escutem minha mãe :
"É a última vez que trago você , faço fantasia e você parece desanimado, carnaval não é a tua.
O que minha mãe não via e que eu também não , é que não conseguia achar graça naquela roda pra lá e pra cá ,esquizoidia que me custaria anos de análise .Nem desconfiava que ali meus níveis de adaptação a vida já estavam sendo questionados.
Nascido na capital suburbana do samba , Madureira, costumo brincar com meus amigos que nasci no Leblon de frente para o mar, e que no Leblon, sim, tinha tudo . Tudo , obviamente que Madureira não tinha.
Mas não consegui fazer o carnaval entrar nas minhas veias a ponto de me tornar um folião e hoje tenho mais dificuldade ainda . Gosto do carnaval com os pacientes onde vejo o quanto se alegram,   cantam, dançam e se divertem , uma festa cheia de intenções humanas .
Ou então aquele carnaval de marchinhas que levava a um tipo de confraternização quase  inocente , mesmo que os desejos espreitassem , mas os modos são tudo.
Como o erótico depende disso , de um certo não poder , do exercício de burlar , de tornar mais difícil o objeto do desejo, sem isto dizia Lacan " o corpo vira carne" e que triste assim.
O que sustenta o desejo é a Lei , e se há a Lei do desejo ,há também o desejo da Lei , diz Lacan.
Corpos engordam , despencam, arrotam, peidam , roncam e ficam disfórmicos ,haja tratamento , negar o escatológico é se precipitar nele.
O Marques de Sade que passou de forma tão vulgar a história era um libertino culto, dos prazeres , a magia da sensualidade , e diga-se de forma refinada .
Nada haver com o grosseiro que lhe foi atribuído .( Em algum momento escreverei sobre a alma libertina" , por razões próprias provavelmente e para fazer jus a almas de amigos queridos, e estudar estas almas me possibilitaram um clarão clínico espetacular )
Talvez, tenha sido esta a motivação de Lopez -Ibor ao escrever sobre loucos egréjios, embora a meu ver , sem deixar de subtrair à loucura seu aspecto questionador da vida neste mundo , contentou-se em explicá-la por conta de doença.
Há um desconforto em viver aqui e Freud sabia disso . Seus estudos finais não falam de outra coisa  senão do mal-estar.Obrigar determinadas almas a este mundo chato, é matá-las aos poucos ou de súbito. Artaud escreveu suas peças dentro do hospital psquiátrico , Niynjisk surtou na hora da apresentação e não voltou mais , Ernesto Nazaré foi encontrado morto na Colônia Juliano Moreira dentro do lago , Artur Bispo do Rosário teve seus momentos mais lúcidos e criativos também na Colônia ,enfim, almas especiais que merecem muitos estudos para serem compreendidas de forma ampla. A vida burguesa aí, não tinha vez. Parece entediante e me lembro de Don Juan de Marco , onde o paciente é o revirão que faltava à vida entediante do Psiquiatra.
O carnaval tem um quê de libertino , mas vulgar e também criativo .
Fico torcendo para invertermos a ordem e o criativo dite a alma do carnaval.
Embora possamos achar estranho , talvez haja uma pedagogia não didática do erótico.
Pelo menos como forma de consagrar sua alma. Os libertinos que compunham a cultura literária da Europa em torno do século XVII, sabiam disso, e Lacan , outro companheiro libertino  foi buscar o amor cortês como inspiração para o erótico que contorna, mas não adere.
Diz Milan Kundera " é preciso livrar o amor da tolice da sexualidade" . Obviamente se referindo como Lacan, que é degradante quando o corpo vira carne . Esta qualidade da vida anímica que sustenta o erótico requer cultivo e dedicação prazerosa , pois aí mora as fantasias e as figurações que nos livram do concreto .
Mas se livrar do concreto não pode ser um ato histérico bruto e compulsivo.
Lá vai eu rumo a Floripa , tá custando a chegar né? haahahahahah
O carnaval parece palavra de ordem , como símbolo de uma cidadania normótica . Não gostar de carnaval é suspeito, pois ou você é religioso e pré-conceituoso , ou é um bundão esquisito que está na contra-mão da história. A falta de contágio requer melhores explicações do que simplesmente não gostar.
Achava que Floripa funcionava como um tipo de solução de compromisso que Freud , lugar onde o desejo e o sintoma combinam algum tipo de encontro e satisfazendo um pouco a cada um . Floripa era então nossa solução de compromisso .
Espiríto de férias , 15 dias , pois como liberal sofro daquela exigência, onde sem mim , não ganho, e férias familiares , onde o nível de permissividade aumenta bastante ,pois não se pode limitar tanto o desejo , ao preço de não se sentir de férias, é cara.
Lá vamos nós de carro , bom, confortável , eu e Ana, minha mulher ,na frente , minha filha Luana com minha sobrinha Bianca no banco de trás . Ambas púberes, algo em torno de 15 anos.
Pernoitamos logo após passarmos por S.Paulo e de manhã seguimos , pegando a famosa rodovia chamada de rodovia da morte que liga S.Paulo a Curitiba . Muitos caminhões e pouco cuidado do poder público, sem dúvida , bastante perigosa e difícil de ultrapassar .
Até aí , tudo bem. Chegamos a Curitiba e após algum descanso seguimos, na estrada que nos levaria a Floripa. Sol gostoso , música e risos , festa das férias e um clima de alegria e tranquilidade no carro. Partimos bem e cheios de desejo de chegar, pois cansa dirigir demais.
Esta estrada é boa e perigosa, pois de três vias, logo passa a duas e às vezes uma.
Subíamos , e conversávamos, quando de repente, o anúncio de 3 vias que todos aproveitam para fazer as ultrapassagens, principalmente de caminhões.
Peguei a pista da esquerda e seguia tranquilo numa velocidade razoável , que nos salvou.
Pois, ao fazermos a curva para esquerda e continuávamos deste lado, a pista virou duas , sendo que , justo a que estávamos desembocava num retorno com uma forte mureta de concreto, e que já não nos permitia parar . É impossível descrever com precisão o que aconteceu , pois vi perfeitamente que só me restava duas opções terríveis , um tipo de decisão relâmpago , pois a mureta era uma questão de segundos . Ou eu jogava o carro na mureta e arrebentava o carro , nos arrebentando ou entrava na mesma velocidade no retorno passando para pista contrária , ou seja, eu contra todos , pois ficaria na contra-mão numa estrada de alta velocidade. Para se ter uma idéia é como se alguém decidisse andar na pista contrária ao fluxo na Avenida Brasil.
O cérebro humano é extraordinário , pois em milisegundos pensei o que me daria chance ou o que faria menor estrago, se é que é possível pensar nisso, numa hora dessas.Me pareceu como se estivesse entrado em algum estado alterado de consciência, que conheço bem, mas de forma diferente. Sofri um tipo de suspensão de mim mesmo .Um estranho silêncio me pareceu chegar , que tive a impressão de ser o da própria morte.
Sinceramente, a mureta de concreto me pareceu dura demais .Me arrebentar ali me parecia fatal ou trágico demais , me ocorreu rapidamente que poderíamos nos mutilar e decidi passar a pista contrária , enfrentando carros , ônibus e caminhões que vinham em alta velocidade.
Achei, sei lá porque, que poderia haver alguma brecha, algum intervalo mágico entre os carros , algum lugar mágico que ninguém via, nem eu, que nos acolhesse por alguns instantes .
Até então minha filha dormia e me pareceu que Ana ou não se deu conta de pronto ou foi tomada dessas lerdices que nos acomete em situações de perigo, pois gritava " tá na contra-mão , tá na contra-mão " e eu já achando que estavámos não na contra-mão , mas no outro mundo  , confirmando que se morre sózinho, talvez como se viva.
 Minha filha acordou e gritava . Biba , minha sobrinha mais calada, e eu de repente escuto uma voz, vinda não sei de onde " calma , calma" busque o acostamento .Os motoristas  se apavoravam quando me viam, pois não podiam acreditar que alguém pudesse estar ali ao contrário , 500 contra um .Buzinas, derrapagens , desvios rápidos , pois na verdade, também estavam em perigo . A voz me tranquilizava e me orientava , ao que prontamente obedeci .
Uma senhora que assistiu a tudo, desde o início, rezava .
Consegui encostar e embora sem sair de todo da zona de risco , fui dando marcha ré torcendo para ninguém me bater. O mundo pareceu parar pra assistir a tragédia anunciada e o carro que ia entrar no retorno, parou para que eu pudesse virar meu carro ainda de ré para outra pista , na direção certa.
Quando consegui sair a senhora agradeceu a Deus e vibrou muito .
Eu em estado de choque e Ana também , as meninas tensas e vibrando .
Orei em agradecimento ,pois sempre oro agradecendo os presentes que recebo ,acho que fui poupado de algo e minha família também , mas fiquei deslumbrado com a voz que me conduziu, um tipo de alucinação sem formato psiquiátrico.
Até hoje, não entendo racionalmente como foi possível sair dali , mas a voz , aquela voz viria a ouvi-la de novo em muitas ocasiões, desta vez me conduzindo para outras direções, principalmente, para ajudar aos que precisam, pois me apareceu, justo, quando eu mais precisava e nenhum mortal poderia nos salvar .
Me pareceu que fui poupado para fazer da minha vida um grande gesto de amor , uma celebração positiva , uma alegria de um carnaval cheio de amizades , e uma escuta dos que sofrem e me ensinam e me ajudam apurar minha escuta do humano, compreendendo modelos e indo além deles. E tenho buscado assim fazer.
Desenvolvi , junto com amigos queridos , um trabalho com pessoas menos favorecidas , pobres , são famílias que oferecemos cestas básicas e com diversos trabalhos de solidariedade e conscientização , já há 15 anos.
E recebo toda quarta -feira gente com todos os tipos de sofrimento que busco confortar , como posso .Não tenho nenhuma religião e ao mesmo tempo, cada vez mais, sinto o sagrado da vida em tudo .Não acredito na morte , e respeito quem assim quer . Grandeza demais, para ficar num cemitério .Mas foi com esta voz que Sócrates chamava de" Daimon", dizendo escutem o seu Daimon , e que lhe disse para não evitar a sicuta , que fiquei por aqui mesmo , sinal que ainda tenho muito o que fazer e farei, mesmo não me sentindo a vontade no carnaval, pois tive uma experiência-culminante , aquela que Maslow dizia que tinha o poder de alterar os valores de um homem.

RETOMAREI POSTERIORMENTE O ESTUDO DESTA VOZ QUE LONGE DE SER EXTEMPORÂNEA, PARECE ESTAR PRESENTE NO OUVIDO DA HUMANIDADE DESDE SEMPRE.
CABO FRIO DIA 7 DE MARÇO

Há ou não inveja do pênis?