Sempre tive uma sensação dúbia em relação aos chamados
“perdidos” ,tipo alguém que perdeu o rumo , saiu da estrada e despencou ladeira
abaixo , e cujo destinação é se despedaçar todo , ou ficar tão imprestável para
vida, que não servirá mais pra nada.
Esta figuração, que não deixa de mostrar nossa impotência é,
via de regra , temida por todos e usada como exemplo do mau caminho, ou seja ,
o que pode acontecer quando se desvirtua , uma alma perdida que escolheu o
caminho auto-destrutivo.
Pedagogicamente , faz
parte das figuras horrendas, citadas como fracasso de quem não dá certo , dos
que não cumpriram os mandamentos , não ratificaram à tradição não honrando seus
compromissos , e deixando um vácuo de continuidade , um prejuízo à coletividade
, aos bons costumes e a moralidade pública e familiar.
A criatura , repudiada pelo convívio é sub-inscrita num
espaço invisível, onde aos poucos, ela mesma tende a desaparecer , pelo menos a
sair do campo da visão , um tipo de anonimato, onde todo mundo concorda sem
admitir , mas ajuda a esterilizar o mal-dito que ameaça a paz social.
Esses malditos são os que quebraram a tradição e não puseram
nada de valor em troca , usurparam os investimentos e não fizeram nenhuma
devolução , antes pelo contrário , só fizeram exibir o prejuízo e deram
mau-exemplo para posteridade.
Tenho a impressão que se houvesse algum meio mais fácil de
se livrar deles sem ferir muito o escrúpulo , tipo sem ninguém ver muito pra
não se comprometerem , isso seria feito , como já é , e colocado na conta de
alguma” impropriedade natural “ , algo como “ pau que nasce torto, morre torto , incurável, intratável, e outros
eufemismos mais de assepsia.
A questão para estes infortunados , é que quebrar a tradição
sem repor algo, é anunciar alguma vanguarda sem nenhum poder de convencimento ,
caso em que, a criatura terá de provar que o ato insolente não é somente uma
desobediência estéril , um descaso ao estabelecido , uma não-aderência que
proponha inutilidades que em nada colabore para construção da vida.
Se este anúncio for falso , se a vanguarda for infame e
inconsistente , a ousadia terá um preço alto e as chicotadas não tardarão ,
anunciando um destino fúnebre e triste , um lugar considerado de excessão no projeto de aperfeiçoamento da raça. A
criatura some , chora a família de dor ou de alívio , passa o tempo , ninguém
sente falta , e justifica-se pela retórica de mais um que não deu certo.
Ma s estes perdidos buscaram frequentar o limiar das
mudanças por revolta ou inadequação ,
mas ficaram aquém , de formas que sua improdutividade lhes tirou qualquer
mérito de anunciar uma boa nova , restringindo –a a um lugar de desencontros
narcísicos , ou de uma pretensão falida de quem não tem credenciais.
Mas e os que tem ? é diferente o processo?
A questão é como diz Bonder , em seu livro “ A alma imoral”
, é que o corpo tem como função preservar à vida e a tradição, lugar onde o
passado se eleva à condição de condutor ao indicar o que presta ou não a essa
preservação.
Quando se transgride , é preciso prometer algo que será
verificado , pois o passado tem sua legislação super-egóica , suas censuras nos
escaninhos da mente, que nos impele a sentir medo quando de frente para tal façanha.
Ficar perdido é uma condição de passagem , pois vive-se uma
ruptura onde o depois ainda não tem rosto definido , e nos obriga a saltar sem
que tenhamos claro onde se agarrar , vertigem cujo retrocesso ao diminuir a
tensão do vivo em sua pretensões
adiantes , nos fará se perder de si
mesmo , nos deixando como herança nossos automatismos empobrecidos e obedientes
.
Não há como não ficar perdido quando se quer mudar , pois
toda mudança implica em transgressão ao que é seguro, cujo aval é coletivo, enquanto
a mudança é uma requisição solitária da alma insatisfeita que busca um novo
“bom” pra si , mesmo que provisoriamente , tenha de ficar na contra-mão da
obediência tradicional.
Perdido neste caso , é o que quer mais, o que ficou
insatisfeito , que quer romper com cumplicidades econômicas que acomodam, mas
tiram o tesão do viver e só fazem repetir sem diferenciar. É o grito da alma que busca as opções
renegadas, por inspirarem medos e figurações destrutivas , placas que querem
fazer parar tudo que ameaça o conforto e ao bem-estar insosso da tradição.
Perde-se quase tudo de início , amigos, família , dinheiro ,
e principalmente a familiaridade com tudo e consigo mesmo e anda-se por passo ,
pois encurta-se o horizonte e o olhar perde sua extensão , teme-se não
conseguir e sofre-se a tentação de voltar o tempo todo .
Andar pra frente não faz parte da tradição ,e por isso é
preciso traí-la diz Bonder com acerto
encantador , mas não andar rumo à evolução onde a alma quer o que não tem, e
deseja a intensidade do que desconhece ao invés marasmo do conhecido , é morrer
, é oferecer o corpo para guardar a vida que já não existe.
A instabilidade é uma condição da mudança já que se passa
pra outro nível diferente , e não simplesmente troca-se um lugar pelo outro , o
que se busca é precário porque nasce quando se começa a chegar , não está
pronto esperando como um trunfo , uma opção escondida que faça vencer.
Perdido é aquele tomado da coragem de ir sem saber o endereço
, aquele que sabe que vai vagar , que
vai chorar , que sente a dor , que vai ouvir lamentos e críticas , que vão rezar
por sua alma , que por vezes vai lamentar ter nascido , que vai ser assaltado
por dúvidas , mas com tudo isso , mesmo titubeando , segue , pois já reconheceu
que sua vida saturou e deseja o desafio do desconhecido , o elixir de novas
emoções de vida ao preço que for.
O que está em jogo é a verdade de sua alma contra mentiras
do seu corpo , enraizado demais na tradição para sustentar rupturas e buscar
novos devires , criança boa deixa de ser aquela que descobre e espontaneamente
quer mais , mas aquela que se adapta sem reclamar , que não dá trabalho aos
outros , que promete fidelidades mesmo não sendo feliz.
Ser feliz incomoda , pois mostra quem não está mais vivo ,
quem já sucumbiu e não espera mais nada , um compactuar com a mesmice em troca
de não se ficar inseguro e perdido , daí o rechaço aos que discordam de tal
proposta assassina , pois preferem morrer para viver do que viver para ficar
morto .
Se navegar é preciso , viver nunca foi e nunca será , sem o
que a vida sucumbiria a falta de graça , caso em que se torna uma desgraça muda
e crônica , já que se perde o espírito da celebração , a festa da existência ,
a alegria do vivo que faz tudo interessante e curioso , à diferença da
desistência que nada tem a comemorar , a não ser o fato de sobreviver , herança
animal de quem acha que conseguiu se esconder do predador.
Mas isso, por si só é pouco , muito pouco, o que exige
compensações e compulsões são ativadas para compensar o que foi tirado , ou
seja , preenche-se para ocupar os espaços que estão vazios de presença ,
inanição por falta de opção , obesidade ou anorexias do corpo por trair a alma
.
Demonizar um “perdido” é supor que todos já se acharam e
sabem onde estão , recalque mentiroso , que depende de uma normose , casa onde
as maldições se tornam um patrimônio comum , através de um normalidade anêmica
e sem pretensões, a não ser de preservar , um tipo de esclerose , que aos
poucos toma a seiva da vida como inimiga e objeto de paranóia .
O triste é que ninguém parece muito feliz com isso , mas se
mover é um perigo a ser considerado , pois não havendo manual ou cartilha de
orientação , só nos resta ousar e suportar um caminho árduo , mas que se nutre
dos ínfimos detalhes do que a vida oferece , um gosto estético de um novo
aprendizado , um reencontro doloroso mas feliz, de quem buscou renascer sem
renegar a alma em seu profundo desejo de ser diferente.
Minha homenagem aos seres de mutação