17.3.13


TAPEAÇÕES

Talvez o que chamamos de “realidade”, tentando conferir a ela um certo mote de determinismo , onde o chavão “ a realidade é assim mesmo “, parece nos impor alguma resignação nos convidando a se conformar , contenha mais mistério  e mais tapeação do que sonha nossa vã filosofia.

Se olharmos atentamente pra nossa vida, o que vemos é um consumo enorme de energia com tarefas , deveres , obrigações e promessas de dias melhores , que impressionam pelo modo como são adiados . É como se vivêssemos com gosto de lesados , assistindo uma série de falcatruas, onde os favorecimentos dispensam qualquer senso de justiça social e considerações sobre o prejuízo aos outros .

Pouco interessa estes outros se estamos assegurados por nossos inter-pares, que não só participam de modo cúmplice , mas que também levam o seu , numa rede de conluios e trapaças , cuja oneração , ou seja , a conta , tem que ser paga por todos ,aqueles que sequer comeram do bolo.

O custo é incalculável e repercute em todas esferas da vida , principalmente , onde os investimentos são necessários para melhorar a vida coletiva em seus aspectos variados , como saúde , alimentação , transporte , lazer etc .

O cenário fica ainda mais agravado, quando nos damos conta, que somente alguns poucos usufruem de tal regalias e que criam mecanismos de reprodução e de defesas elaboradas , para não perderem o gozo dessa usurpação , bem como , colocam a si mesmos como representantes legítimos de tal aberração .

Obviamente ,e sabemos bem disso , nada disso é novo ,e senhores e escravos, opressores e oprimidos , patrões e empregados , governos e sociedades , sempre dialetizaram em torno de seus interesses políticos e materiais , e nesse sentido a história parece se repetir .

No entanto , na medida em que evoluímos , seja pela retórica da evolução biológica ou espiritual , onde a evolução da consciência parece ser a chave do processo , vamos percebendo também que o mundo encarna às mazelas que nos pertencem .

Correções que estabeleçam um correto que não seja morto ou corrompido , dependem de uma certa suscetibilidade , que pode vir pelo viés político, religioso , ou espontaneamente compassivo , onde o outro não pode ser uma decoração sem voz , sem reconhecimento , sem um mínimo de sujeito que diga , que aja , que faça jus ao que o humano tenha de dignidade.

O tal "olho grande" que atribuímos às crendices e superstições , pelo contrário , parece um fato de grande relevância científica , pois é grande por querer conter mais e mais , sustentando a lógica perversa , de que uma vez podendo ter mais , porque não?

Justifica-se então que os outros são meramente invejosos porque não tiveram oportunidade , e sendo assim , pega-se o quanto mais melhor , pois qualquer um faria o mesmo nesse lugar , lógica fácil de entender, porque determinados lugares uma vez alcançados , não se quer sair mais deles .

Premissa do próprio atraso e do sub-desenvolvimento interesseiro , ou seja ,a ignorância como instrumento de dominação , renega-se a idéia de uma teia própria da vida, onde todos tem o seu lugar e sua importância em sua cadeia de produção , sendo que , acrescentando à Capra, que  nossa realização como espécie , depende de desenvolvermos a capacidade de amar .

É o amor que nos dá a chance de nos reconhecermos igualmente perante nossas diferenças , e se hoje , a neurociência descobre que o Bem é também mecanismo de produção de serotoninas e endorfinas , é ao humanizar o outro em seu valor , que minha humanidade se realiza .

Depreciar o outro, condená-lo ao prejuízo, tornar a vida mais difícil pra todos em nome de ganâncias , fere é a ordem que jogamos fora , para nos livrar dela e ficarmos mais a vontade com nossas trapaças , fazendo o mundo depender somente de nossas inteligências e sofisticações culturais , isto é, a ordem cósmica .

Reconhecer que pertencemos a uma Ordem maior pode nos inferiorizar , nos fazer  reviver submissões opressivas de religiões autoritárias , e aguçar nossos traumas de liberdade , mas tudo nos mostra que não há outro caminho , já que distorções geram desequilíbrios caros e sofrimentos profundos demais .

Muita riqueza pra poucos faz sofrer a muitos , muita ladroagem tira da vida à confiança , muitos assassinatos nos faz ter medo de viver , à violência destrói nosso prazer de estar aqui e cria fobias estranhas , o cinismo nos torna cínicos e prisioneiros de segundas intenções .

Adoecemos a olhos vistos com desequilíbrios mais variados no campo mental , e se Freud se surpreendeu com a força da sexualidade , hoje sua banalização gera esquizoidias nos afetos , no sentido da entrega , pois porque se comprometer se se pode ter mais?

E mais ,e cada vez mais , uma compulsão perigosa que leva consigo qualquer fundamento , onde tudo vale , já que é uma questão de livre-arbítrio , e onde a ordem social perdeu seu fio condutor de dizer o que é bom ou ruim , ou seja , somos livres como queríamos , e perdidos como nunca.

Nossas transgressões não geram de fato uma outra ordem , onde pudéssemos relaxar e compartilhar os ganhos , pelo contrário , mal chegamos e logo saímos , já que nada serve muito , e por uma estranha compulsão temos que seguir , embora , por favor , não perguntem pra onde .

Canalhices ferem o tecido social e forjam imagens perigosas da vida como um campo de ninguém , nos ensinando que se formos canalhas estamos matriculados , já que o sintoma da tapeação se tornou uma palavra de ordem da sobrevivência .

Mas por outro lado , é incrível, que o que condenamos , também descobrimos em nós , e também somos objetos e sujeitos dessa perversão , não como agentes de coisas extremas mas talvez de pequenas lesões que também nos interrogam em nossa coerência e o quanto fazemos da vida uma questão de oportunidade .

Creonte , o grande Rei de Tebas , dizia que só se conhece um homem depois que ele passa pelo poder , e sem dúvida , prova difícil do que temos de incorruptível , como se fossemos afrontados com a tentação  de “ que a ocasião faz o ladrão “.

É por vezes tão ruim ver governantes esbanjar cinismo em proveito próprio , como é difícil ver o guardador de  carro cheio de espertezas e intimidações , como é mais difícil ver um amigo lesando conscientemente alguém .

Mas o mais doloroso é ver que somos vacilantes, e que nossas convicções também tem sua parte frouxa , que também nutrimos em muitas ocasiões, a mesma retórica que tanto nos parece execrável nos outros .

A cura passa por aí , curar em si o que maldiz o outro , único meio de se libertar desse visgo, que com certeza , ainda teremos que trabalhar e sofrer muito para transformá-lo numa compreensão cósmica , aquela que nos ensina e nos lembra , que apesar de todos os tesouros, um dia que não se sabe a hora , vamos morrer .

Será que haverá outro tipo de justiça a nos esperar ?

Há ou não inveja do pênis?