23.4.11

Os Luizes - O Rei Sol e o carregador de Feira

Conhecem Luiz XIV , o chamado Rei Sol ?
Nãoooo? Nem eu .
Comecei a me interessar por ele quando descobri que era um desses reis que tinha uma vocação absolutista e que cunhou a frase "O Estado sou Eu".
Sempre estudioso do Eu , gosto de acompanhar suas tendências magnânimas , bem como, suas ladeiras abaixo , essas tendências cavernosas , de trevas como diz a rapaziada.
Este Luiz XIV era danado , gostava do poder( quem não gosta?) , passou a história como alguém excessivamente vaidoso e mulherengo . O que não faltava eram amantes , pior que ele só outro monarca danado , chamado Henrique VIII , que era brabo e mandava matar as amantes.
Luiz gostava de perucas e fez a moda pegar e a partir dele , passamos a ver aquela perucada toda nos filmes , um tipo de apetrecho estético de tremendo mau-gosto , principalmente quando a pessoa era mostrada na hora de dormir , sem peruca .
Peruca era um modo fixo de se mostrar e de esconder, dava um ar sóbrio , possivelmente as falcatruas que nunca pararam de acontecer nas esferas mais altas da Corte e do Estado , até hoje , ou melhor, hoje mais do que nunca.
A plebe coitada não tinha peruca , era como era mesmo , em geral feiosa e sem adornos hipnóticos.
O nosso rei , que não devia ser nenhuma formosura , achou que com peruca tudo ficava melhor, no que foi imitado pelas Cortes do Europa . Quando se tornou rei herdou o trono de sua mãe , devia ser edípico , uma França mal das pernas em têrmos de grana e destroçada economicamente.
Pois , nosso Rei ao longo de um reinado de 54 anos conseguiu tornar a França um potência e teve dificuldades para aceitar seu sucessor , que por sua vez era chegado à sapato , que se consagrou como o famoso sapato de Luiz XV, com direito a fivelinha dourada e tudo.
Já o nosso outro Luiz , esse eu conheci numa feira dessas da vida.
Se biotipo lembra o pigmeu , magro , baixo e feio .
Me abordou no final da feira , justo quando você já está começando achar que comprou mais do que as mãos permitem , oferecendo para que eu colocasse tudo no carrinho.
Quanto? perguntei eu.
Ah , não se preocupe e me dê o que achar melhor.
Acho incrível , esses encontros com cara de nada e que contém potências especiais do tempo, pois ali começava nossa amizade que até hoje consagro e agradeço.
No caminho para minha casa aproveitei e perguntei sobre a vida do meu parceiro de lado .
O que faz você na vida amigo?
Ué , carrego compras.
Filhos ? Já que me parecia um homem de meia idade , apesar do corpo franzino e juvenil !
4 filhos , me disse rápido .Achei que era sacanagem . Sério ? insisti!
Algo em mim naquele momento relutou em acreditar , não pelo Luiz , mas por mim mesmo.
Liberal desde há muito , vivi os altos e baixos da vida daqueles que trabalham pra si .
Mesmo número de filhos de meu amigo , me faltou folêgo e coragem na imaginação para supor a possibilidade criá-los com carrinho de feira e com preço ditado à sensibilidade do freguês.
Começando a vida cedo , numa atividade cheia de ranços elitistas, por muitas vezes temi por mim e pelos meus.Fantasias de falência nunca me faltaram e sempre no meu imaginário guardei lugar para outra atividade , caso o caminho da mente fracassasse.
Mas eu sempre quis louvar minha paixão e fui indo , aproveitando tudo , não desperdiçando nada, lá ia eu. Sabendo que no meu caso era tudo ou nada , pois minha família já tinha ficado para trás. Pensei em várias coisas alternativas , plano B , caso necessário , mas nunca me ocorreu ganhar a vida com carrinho tipo roleman na feira.
Olhei para Luiz , pensei em meu humor, que não dispenso, o quanto lhe ficaria surreal uma peruca. Um pigmeu feio com uma peruca mentirosa da Corte.
Vi o desenho animado que surgia enquanto conversava com ele.
As vezes me pergunto se as combinatórias lógicas impossíveis não mudariam em algum lugar. A idéia de uma lógica não-linear existe e com belos estudiosos ( Vide Newton Costa , em seu livro sobre este tema), e a força do país de Alice.
Como ?
Como o que ? retrucou ele.
Como é possível criar 4 filhos com carrinho de feira?
A resposta , quase me fulmina , disse simplesmente " não sei".
Entregar a vida ao não sei sempre foi pra mim impensável. Desde cedo, me tornei adepto que é preciso saber , havia muitos vácuos em minha história de vida que se tornaram fracassos, pelo descaso do não querer saber.
Com filhos a vida é outra, diga-se, muito outra.
Fracassar tendo filho é um castigo eterno , dizia Rosseau, que abandonou seu filho , apesar de ter tão bela alma. Ouvir filho pedir e não ter , é algo que mata me dizia , uma jovem mãe que , por vezes não tinha o que oferecer a seus filhos.
Luiz propunha algo revolucionário e diferente , nem o ter nem o não ter , mas o ter um pouco que seja a cada dia , mas sem saber.
Parodiando Sartre " A consciência é ou não um inferno?
A angústia do saber era um divisor de classe entre eu e Luiz naquele momento, principalmente porque para ele o futuro é amanhã de manhã na nova feira .
E pra mim uma tentativa de arrancar do tempo uma salvaguarda que permitisse fazer chegar a uma margem segura as pretensões daqueles que amo.
Completamente vazado , era como me sentia , absorto , tive dificuldades para continuar a conversa . Algo me questionou duramente e fiquei meio sem folêgo.
Da onde tinha tirado isso?
Que estranha doutrina esta, que me garante pelos meus e nem sempre me fez me interessar pelo dos outros?
Imaginei os filhos de Luiz ,sem Corte , por muitas vezes sem luz e comida, e dependendo do alcance de cada freguês em relação as tarefas que não se encontram em nenhuma ordem de valor estabelecido.
Seu Alex ... me chamou ele , me salvando provisoriamente sei lá do que.
E aí Luiz , onde você mora?
No morro dos macacos , ( na época sem UPP ou qualquer ordem , a não ser dos traficantes)
num casébre que está caindo o telhado em função das chuvas .
Entendo como muita gente prefere não conversar com os pobres ou despossuídos, pois têm que abrir concessões ao imaginário e ver, mesmo que rápido, o que suas paredes escondem. E como se vendo tem que mudar ou reificar suas hipocrisias.
Reificação ´eis uma idéia genial de Marx, mas não só ideológicamente , mas como destino de qualquer formação mental que tenha ficado dura e insensível , embotamentos do coração .
Meu hino de louvor ao Amor é o Sermão da Montanha , montanha difícil de subir , mas tento , um dia chego.
E como é a vida dentro da sua casa , perguntei de forma mais íntima?
Ah, meus filhos brincam , minha mulher trabalha em casa e ...... E a tv , perguntei , tentando ocupar o espaço doméstico ? Não temos , não dá .
Lacan dizia que quem sabe é o inconsciente , lá é o lugar do saber .
Eu digo , que quem sabe é o Mestre que te ensina e te faz escutar , e sabe aonde Ele está?
Na vida , nem nos consultórios , nem em lugar nenhum, não há paredes para sua presença , por isto , religar , enquanto um religião só existe no mundo , no i-mundo reitera Lacan.
Os chineses, povo incrível e milernamente sábio , afirmam que há os sopros de animação da vida , o modo como a Terra rende homenagem ao Céu e que nos compete animar os fluxos com o risco de tudo estagnar.
Uma pergunta metafísica : O que é a vida moderna sem tv?
Que animações possíveis refazem os movimentos da vida moderna sem a tv?
Duro foi ouvir que era o que os filhos mais pediam , reiterando a tese que hoje a tv independe dos aparelhos. O mundo é uma grande tv, a aldeia cheia de canais de Mac Luhan.
Fui arrebatado e entre eu e luiz , algo se fez .
Ele o plebeu , anônimo , despossuído que a vida não tem mais o que tirar , eu o sensitivo angustiado com os destinos do mundo , e impotente perante tanto clamor de injustiças e consideração , um encontro que que sem dúvida me rende mais do que a ele.
Sujeitos de uma ordem comum , ocupamos lugares diferentes, protagonizamos questões de um mesmo tempo e como atores temos palcos e cenários distintos.
Há ali naquele carrinho (que fiz questão de conhecer , obra prima dele mesmo) , um gosto incrível de desafio e temor para mim. Nele vão juntos 5 vidas que se compõem a cada dia rigorosamente , não há depois, não há planos ou dívidas , apenas a expectativa do quanto foi possível hoje .
Viver assim é para alguns uma libertação , digo, para os iluminados que vivem em órbitas acima . Não é o meu caso . O tempo pra mim exige compasso e antecedências , que luto para corresponder e sofro o medo de não conseguir.
Meu amigo é muito bem humorado e sorridente , não há ali um amanhã para se conversar .
Encarno a exigência do lugar que ocupo e tenho destinações sociais que requerem um longo esforço . Luiz é pai, marido , tem que pagar algumas contas mesmo que minímas, tem que escutar a infância dos filhos que também tem seus desejos e lá está ele , disposto a cada dia.
Sempre ensino meus filhos a agradecer, pois temos muito e por vezes mais do que o necessário. A cada dia acordo e sou acordado junto com todos que me fazem parte.
Luiz é um deles , fico imaginando como está , seu café , sua feira , seu dia valente.
Meus amigos sempre me fazem companhia ,são meus sustentáculos de imaginação diferenciada e de exercícios dos vários caminhos possíveis que a vida oferece a cada um.
Jung em seus solilóquios se perguntava o que a vida queria de nós.Se haveria aí algum plano oculto que nos seria de competência . O Grande homem chorava seus lamentos e limitações para compreender o que nos escapa , e olha o quanto lhe devemos por seus ensinos.
Reflexões amplas e dolorosas , testemunhadas com dor e amor , não os que chegam aí perto não se perturbam. Talvez aprendam que a força terrível do Mistério se encarna primeiro como desafio a nossa capacidade amar e compreender .
Cada um é um mistério em si e por si , e para entrar precisamos estar perto, desfazer indiferenças e arrogâncias que as perucas ostentam nas Cortes do mundo.
Comecei,num gesto assistêncial para comigo mesmo , por oferecer a ele a tv e o convidei para num grupo seleto nos contar como é possível , sem metáforas, fazer acontecer todos apêlos feitos a um homem , desde dinheiro , sexo, casamento, paternidade , futuro , tendo como alavanca um carrinho de feira.
Hoje em um trabalho institucional com 60 famílias muito pobres oferecemos a cesta básica e algumas oficinas de trabalho e conscientização de oportunidades que buscamos nos informar . Um trabalho modesto sem pretensão revolucionária , talvez um modo como procuramos saldar as dívidas ancestrais e comunitárias que todos temos conosco mesmo ,
e que teremos que trabalhar e muito para saldar. Mas porque não ? Sem o gozo amoroso da alteridade a vida é nula. Amar diz respeito a "auto -sobrevivência através da alteridade" diz Bauman , o filósofo líquido , numa reflexão que nos denuncia com rigor .
Amamos o outro enquanto uma alteridade simétrica , aquele que nos falta e não comparece mas um outro de qualidades afins . o que sustenta o imaginário sem subtraí-lo de pronto, se não o jogo, não dá partida.
Mas amar o nosso amigo não nos permite nenhum imaginário de reciprocidades, pois o princípio neste caso é " não se ama a quem não tem". Uma dimensão desconsiderada do amor que nos faz uma falta terrível e ao mesmo tempo que nos condena as exigências das fantasias inter-pares.
Luiz é um outro que precisa e desafia quem pode dar , assim como todos os Luizes e Luizas da vida, mas não há como inscrevê-lo na lei da compensação , o que posso receber quando dou . Não, é um dar , tipo aquele onde uma mão ignora o que faz a outra.
Mas aí só há ganho , mesmo que não seja nas moedas mesquinhas que o mundo consagrou.
Doações de amor enquanto ruptura de ordens estabelecidas , de coragens que nos levam muito além do que se vê e que faz com que há muitos , nem a morte os intimide.
Uma civilização de causas líquidas e descartáveis , inflação contagiante de Eros enquanto sedução e com forte temor a dedicação como causa . Há um preço e já estamos pagando com altos custos.
Mas , é um direito a escolha.
Agradecemos até hoje este encontro , este presente, que Luiz nos ofereceu , causando em nós uma revolução tão impactante , que se a França agradece ao seu Monarca talentoso , agradecemos nós ao nosso plebeu anônimo , que sem colocar peruca alguma no real da vida nos proporcionou uma profunda reconsideração na forma de pensar a vida, e na convicção de que os líquidos significam , não um des-caso , uma falta de caso , mas um forma de desprendimento onde os sólidos podem se liquefazer , pois a matéria é sensível ao amor como catalizador.
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

Há ou não inveja do pênis?