30.1.13

A DOR QUE NÃO TEM PREÇO


 

Desde sempre suspeitamos que há estranho no reino da Dinamarca . É como tivéssemos uma quase certeza , não afirmada , que em nossas vidas as coisas acontecem sem que possamos antecipá-las , embora tendo que vive-las .
O estudo do destino , hoje renegado por uma sociedade que se julga por demais inteligente , sempre foi um ponto privilegiado em outros tempos , considerados primitivos demais para serem levados em conta .
Mesmo a afirmação dos gregos mostradas em suas tragédias de que “ O homem não pode fugir ao seu destino “ , nos soa muito determinista e não convém, exacerbar nos determinismos , ao custo de nos tornarmos místicos ou supersticiosos , duas modalidades condenáveis para o brilho do intelecto .
No filme “A ponte de S.Luis Rey “ o tema é tratado com incrível sensibilidade , pois de antemão o autor coloca a sinistra questão do porque mediante acontecimentos trágicos , lá estão determinados atores , protagonistas de um enredo invisível , chocante , aterrador , e como todo trágico , irreversível .
Deuses e homens se atraem e se repelem na disputa pelo destino , e por isso as moiras fiandeiras eram tão temidas , pois uma fia, a outra mede e a outra corta , nos dando a idéia de que os fios de nosso destino passam por 3 tempos lógicos e inexoráveis.
O que querem os Deuses ? perguntamos cheios de temor e raiva , dependendo do que nos compete  ou sejamos obrigados a viver , questão tão enigmática que parece eterna e infinita, sendo respondida a cada tempo , a cada geração .
É como se procurássemos um nexo que funcionaria como uma ponte de sentido , um elo que hoje , depois de tantas imposições autoritárias deixamos na mão da ciência que nos parece mais confiável para afastar o fantasma da inquisição religiosa .
Tornamo-nos adeptos do conhecimento mais lógico , mais explicado , supostamente mais palpável , mas lento demais para nos consolar em aflições profundas , principalmente, quando viver nos exige algo que nossos nexos ordinários e cotidianos já nada mais podem nos oferecer.
Roubar o segredo do Deuses foi o ímpeto de Prometeu por amor aos humanos , preço alto a ser pago, se supõe que o que se quer é o poder de alterar o destino , já que não saberíamos o que fazer se alterássemos a ordem dos acontecimentos , discussão oportuna que a chamada Neonatologia , à intervenção do homem na concepção da vida ,vem se debatendo .

A consciência por sua vez , muito próxima dos níveis mais imediatos , serve como um tipo de regulação energética , como se empenhasse em nos manter atentos por aqui mesmo , possivelmente uma forma de garantir a vida contra nossa vulnerabilidade .

Vamos vivendo ordinariamente renegando qualquer alerta maior que nos tire o sossêgo , uma tendência arcaica , onde viver e bem-estar se confundem , uma aderência ao princípio que Freud tomou como primário , ou seja , buscar o prazer e evitar a dor .
Mas e as dores inevitáveis , aquelas que colocam em jogo nosso desejo de sobreviver ?
É sempre bom lembrar que tudo só é se faz sentido , onde as significações que sustentam a vida nesse mundo são ratificadas e fazem merecer o esforço , senão cai-se num buraco de esvaziamentos mortais que dilaceram nosso patrimônio espiritual em pouco tempo .
Viver é também um ato de convencimento compartilhado e dependendo da situação a morte pode parecer muito mais interessante , principalmente quando o que se perde é tão valioso , que nos deixa em extrema pobreza miserável quando se vai.
 A vida só é um louvor para os que assim procedem , mas mesmo nosso entusiasmo é posto à prova quando perdemos ,pois há fissuras que se estabelecem e comprometem à circulação da seiva da vida em nós , como se tivéssemos que ver grandezas onde somos extremamente míopes .
Uma dor profunda por perdas irreversíveis quebra identificações e podem jogar nossas crenças ao chão , pelo ralo para ser mais preciso , ou podem ser colocadas no altar da salvação , um último antídoto contra o desespero da auto-destruição .
Mas é verdade também que onde optamos por continuar , precisamos a todo tempo relembrar o pelo que continuamos , “um tirar forças não se sabe de onde”  dizia uma mãe chorando pela morte de sua filha na boate .
A falta é que já não temos nenhuma transcendência a nos oferecer , pois tratamos isso como uma questão religiosa , ou seja , um modo opcional , já que nossas concepções nos deixam absolutamente órfãos , quando mais precisamos delas .
Deus é um agora ou um depois ? Há uma Divindade para momentos terríveis e chocantes como este da boate , onde se morre impiedosamente , na forma mais absurda possível?
Essa dura questão difícil , parece ser hoje mais do que nunca uma busca pessoal , pois corresponde muito mais aos estados d`alma do que razões consensuais ( vide “ estados d`alma” nesse blog), a um vigor particular mais do que consolos coletivos .
O Divino só no mais íntimo , um corte com as superfícies de plantão, um silenciar perante as falações sonoras , um dispor, mais do que um antagonismo que ao se fechar nos condena ao escuro da circunvolução desesperada de rodar, rodar e não sair do lugar .
O homem é a parte , o primor da Criação nos dizem ,e sem dúvida , que bela espécie extraordinária , capaz de consciência , de amor e de ódio , de aconchegos e rejeições , uma criatura das polaridades , um bi-polar a procura de uma unidade não-escrita , segundo Lacan.
Mas se sofremos e se a dor ataca agudamente o Ser , então , o que fazer ? A dor não faz ,a dor desfaz .  E desfaz o que precisamos desfazer , caso queiramos continuar . Um processo de profunda desobstrução , uma retomada de pura coragem e de rumo , pois o senso de direção ou muda ou fica mais vivo , uma re-inserção a duras penas.
Fênix é um mito fantástico , pois temos que renascer do que restou , e nos ultrapassar onde a desistência parece tão de acordo e óbvia , um sumiço econômico onde nossa ausência nesse momento nos parece a melhor forma de sumir a dor . Sumo onde a dor aparece demais .
Quando mergulhamos nesse universo profundo empurrados sem escolher tudo se desfaz , todo modo compactuado , que nos dava a sensação de solidez e por onde transcorria nossa cotidianidade , uma síntese heterogênea dos propósitos que compõem nossa vigília  e também dos sonhos onde esperávamos chegar , há um colapso onde somos arremessados pra longe .
E este longe é tão mais torturante quanto perto é , sofre-se dentro de uma familiaridade perdida, como acreditar que o que estava ali a tão pouco tempo atrás , não esteja mais?
Que corte pode ser este , com poder inacreditável de nos tirar o que nos era tão precioso , tão perto e alcançável , compondo o cenário que nos acostumamos a conviver , a dormir e acordar como se fosse uma extensão nossa , uma privacidade que supúnhamos blindada , e que de repente , constatamos que fomos roubados , lesados , sem o menor poder de nos defender ?
Como dizia um pai, que chamado a reconhecer o corpo de sua filha morta num acidente de trânsito, como dizer que a pessoa que saiu tão linda e arrumada a pouco , pode ser a mesma desfigurada e enrolada num saco plástico preto , como se  fosse um lixo ?
Estica-se a mão e não se pode mais pegar , embora sentindo-se que o outro está ali e que o espaço físico não pode ser o critério de se validar ou não essa presença , principalmente onde o coração se apresenta para gritar sua importância e sua recusa de que a perda possa levar o que não plantou .
Mas nossa vida é assim , um enredo ladeado e circundado pelo mistério , o que nos faz supor o destino na esperança de antecipá-lo , numa tentativa de sair da frente do que de dor ele possa trazer , mas como?  Não temos este poder mágico cobiçado pelos mitos e lendas medievais , o que temos é a consciência cada vez mais aguda de que estamos expostos .
Talvez para muitos esta seja a grande fobia de viver e se relacionar , já que a vida nos coloca perante o imprevisível, e estreita nossas fórmulas de segurança . A magnitude do perigo para Freud é se perceber sozinho  quando todos se vão ,e talvez nesse momento de tanta dor , descubramos que tanto na dor quanto no amor estamos sós , essa estranha condição que nos torna únicos , a mesma condição que faz do Divino uma convicção de vida , única maneira de tê-la também na morte .
Às famílias e seus filhos mortos , a dor que só imaginamos , o suficiente para silenciar e rogar para que a vida prevaleça e nos dê força, e onde nossos mortos vivam a grandeza que sua morte nos deixou como legado . Um laço de amor inesquecível , uma transcendência de corações  , onde a razão já não pode chegar .

Meus sentimentos a todos .

 

 

Há ou não inveja do pênis?