Desde sempre suspeitamos que há estranho no reino da
Dinamarca . É como tivéssemos uma quase certeza , não afirmada , que em nossas
vidas as coisas acontecem sem que possamos antecipá-las , embora tendo que
vive-las .
O estudo do destino , hoje renegado por uma sociedade que se
julga por demais inteligente , sempre foi um ponto privilegiado em outros
tempos , considerados primitivos demais para serem levados em conta .
Mesmo a afirmação dos gregos mostradas em suas tragédias de
que “ O homem não pode fugir ao seu destino “ , nos soa muito determinista e
não convém, exacerbar nos determinismos , ao custo de nos tornarmos místicos ou
supersticiosos , duas modalidades condenáveis para o brilho do intelecto .
No filme “A ponte de S.Luis Rey “ o tema é tratado com
incrível sensibilidade , pois de antemão o autor coloca a sinistra questão do
porque mediante acontecimentos trágicos , lá estão determinados atores ,
protagonistas de um enredo invisível , chocante , aterrador , e como todo
trágico , irreversível .
Deuses e homens se atraem e se repelem na disputa pelo
destino , e por isso as moiras fiandeiras eram tão temidas , pois uma fia, a
outra mede e a outra corta , nos dando a idéia de que os fios de nosso destino
passam por 3 tempos lógicos e inexoráveis.
O que querem os Deuses ? perguntamos cheios de temor e raiva
, dependendo do que nos compete ou
sejamos obrigados a viver , questão tão enigmática que parece eterna e
infinita, sendo respondida a cada tempo , a cada geração .
É como se procurássemos um nexo que funcionaria como uma
ponte de sentido , um elo que hoje , depois de tantas imposições autoritárias
deixamos na mão da ciência que nos parece mais confiável para afastar o
fantasma da inquisição religiosa .
Tornamo-nos adeptos do conhecimento mais lógico , mais
explicado , supostamente mais palpável , mas lento demais para nos consolar em
aflições profundas , principalmente, quando viver nos exige algo que nossos
nexos ordinários e cotidianos já nada mais podem nos oferecer.
Roubar o segredo do Deuses foi o ímpeto de Prometeu por amor
aos humanos , preço alto a ser pago, se supõe que o que se quer é o poder de
alterar o destino , já que não saberíamos o que fazer se alterássemos a ordem
dos acontecimentos , discussão oportuna que a chamada Neonatologia , à
intervenção do homem na concepção da vida ,vem se debatendo .
A consciência por sua vez , muito próxima dos níveis mais
imediatos , serve como um tipo de regulação energética , como se empenhasse em
nos manter atentos por aqui mesmo , possivelmente uma forma de garantir a vida
contra nossa vulnerabilidade .
Vamos vivendo ordinariamente renegando qualquer alerta maior
que nos tire o sossêgo , uma tendência arcaica , onde viver e bem-estar se
confundem , uma aderência ao princípio que Freud tomou como primário , ou seja
, buscar o prazer e evitar a dor .
Mas e as dores inevitáveis , aquelas que colocam em jogo
nosso desejo de sobreviver ?
É sempre bom lembrar que tudo só é se faz sentido , onde as
significações que sustentam a vida nesse mundo são ratificadas e fazem merecer
o esforço , senão cai-se num buraco de esvaziamentos mortais que dilaceram
nosso patrimônio espiritual em pouco tempo .
Viver é também um ato de convencimento compartilhado e
dependendo da situação a morte pode parecer muito mais interessante ,
principalmente quando o que se perde é tão valioso , que nos deixa em extrema
pobreza miserável quando se vai.
A vida só é um louvor
para os que assim procedem , mas mesmo nosso entusiasmo é posto à prova quando
perdemos ,pois há fissuras que se estabelecem e comprometem à circulação da
seiva da vida em nós , como se tivéssemos que ver grandezas onde somos
extremamente míopes .
Uma dor profunda por perdas irreversíveis quebra
identificações e podem jogar nossas crenças ao chão , pelo ralo para ser mais
preciso , ou podem ser colocadas no altar da salvação , um último antídoto
contra o desespero da auto-destruição .
Mas é verdade também que onde optamos por continuar ,
precisamos a todo tempo relembrar o pelo que continuamos , “um tirar forças não
se sabe de onde” dizia uma mãe chorando
pela morte de sua filha na boate .
A falta é que já não temos nenhuma transcendência a nos
oferecer , pois tratamos isso como uma questão religiosa , ou seja , um modo
opcional , já que nossas concepções nos deixam absolutamente órfãos , quando
mais precisamos delas .
Deus é um agora ou um depois ? Há uma Divindade para
momentos terríveis e chocantes como este da boate , onde se morre
impiedosamente , na forma mais absurda possível?
Essa dura questão difícil , parece ser hoje mais do que
nunca uma busca pessoal , pois corresponde muito mais aos estados d`alma do que
razões consensuais ( vide “ estados d`alma” nesse blog), a um vigor particular
mais do que consolos coletivos .
O Divino só no mais íntimo , um corte com as superfícies de
plantão, um silenciar perante as falações sonoras , um dispor, mais do que um
antagonismo que ao se fechar nos condena ao escuro da circunvolução desesperada
de rodar, rodar e não sair do lugar .
O homem é a parte , o primor da Criação nos dizem ,e sem
dúvida , que bela espécie extraordinária , capaz de consciência , de amor e de
ódio , de aconchegos e rejeições , uma criatura das polaridades , um bi-polar a
procura de uma unidade não-escrita , segundo Lacan.
Mas se sofremos e se a dor ataca agudamente o Ser , então ,
o que fazer ? A dor não faz ,a dor desfaz .
E desfaz o que precisamos desfazer , caso queiramos continuar . Um
processo de profunda desobstrução , uma retomada de pura coragem e de rumo , pois
o senso de direção ou muda ou fica mais vivo , uma re-inserção a duras penas.
Fênix é um mito fantástico , pois temos que renascer do que
restou , e nos ultrapassar onde a desistência parece tão de acordo e óbvia , um
sumiço econômico onde nossa ausência nesse momento nos parece a melhor forma de
sumir a dor . Sumo onde a dor aparece demais .
Quando mergulhamos nesse universo profundo empurrados sem
escolher tudo se desfaz , todo modo compactuado , que nos dava a sensação de
solidez e por onde transcorria nossa cotidianidade , uma síntese heterogênea
dos propósitos que compõem nossa vigília
e também dos sonhos onde esperávamos chegar , há um colapso onde somos
arremessados pra longe .
E este longe é tão mais torturante quanto perto é , sofre-se
dentro de uma familiaridade perdida, como acreditar que o que estava ali a tão
pouco tempo atrás , não esteja mais?
Que corte pode ser este , com poder inacreditável de nos
tirar o que nos era tão precioso , tão perto e alcançável , compondo o cenário
que nos acostumamos a conviver , a dormir e acordar como se fosse uma extensão nossa
, uma privacidade que supúnhamos blindada , e que de repente , constatamos que
fomos roubados , lesados , sem o menor poder de nos defender ?
Como dizia um pai, que chamado a reconhecer o corpo de sua
filha morta num acidente de trânsito, como dizer que a pessoa que saiu tão
linda e arrumada a pouco , pode ser a mesma desfigurada e enrolada num saco
plástico preto , como se fosse um lixo ?
Estica-se a mão e não se pode mais pegar , embora
sentindo-se que o outro está ali e que o espaço físico não pode ser o critério
de se validar ou não essa presença , principalmente onde o coração se apresenta
para gritar sua importância e sua recusa de que a perda possa levar o que não
plantou .
Mas nossa vida é assim , um enredo ladeado e circundado pelo
mistério , o que nos faz supor o destino na esperança de antecipá-lo , numa
tentativa de sair da frente do que de dor ele possa trazer , mas como? Não temos este poder mágico cobiçado pelos mitos
e lendas medievais , o que temos é a consciência cada vez mais aguda de que
estamos expostos .
Talvez para muitos esta seja a grande fobia de viver e se
relacionar , já que a vida nos coloca perante o imprevisível, e estreita nossas
fórmulas de segurança . A magnitude do perigo para Freud é se perceber
sozinho quando todos se vão ,e talvez
nesse momento de tanta dor , descubramos que tanto na dor quanto no amor
estamos sós , essa estranha condição que nos torna únicos , a mesma condição que
faz do Divino uma convicção de vida , única maneira de tê-la também na morte .
Às famílias e seus filhos mortos , a dor que só imaginamos ,
o suficiente para silenciar e rogar para que a vida prevaleça e nos dê força, e
onde nossos mortos vivam a grandeza que sua morte nos deixou como legado . Um
laço de amor inesquecível , uma transcendência de corações , onde a razão já não pode chegar .
Meus sentimentos a todos .