15.5.12
Sobre o dois : o lá e cá do Mistério
“Com efeito ,esse é o mistério da consciência. Os seres humanos afastam-se desse mistério; nós nos afastamos da escuridão , das coisas que são inexplicáveis. Encarar a nós mesmos em outros termos é loucura. Portanto, não despreze o mistério do homem em você sentindo pena de si mesmo ou tentando racionalizá-lo .Despreze a estupidez do homem em você, compreendendo-a. Mas não se desculpe por nenhum dos dois ; ambos são necessários.”
D Juan in “ O fogo interior”
Parece que somos fadados e enfadados a se virar no dois , essa nossa eterna divisão que vive a sonhar com o Um , nosso grande amor impossível , nossa busca agoniada de reconciliação , o sonho de juntar as margens e cessar a busca , o Nirvana que fez Freud apontar para morte como sendo o “gran finalle” , enfim, o zero do apagamento. Não há nada mais a se querer;
Desde sempre ouvimos que a vida depende de nossa afirmação , um tipo de doutrina que procura validar o que existe como sendo o que há de melhor, somos obrigados a nos tornar adeptos dessa religião que nos torna participantes sem opção .
Validar o mundo , eis nossa grande premissa pedagógica , pois essa é a nossa casa , o único mundo possível , portanto, tratemos de entrar em cena como atores que protagonizam o enredo sem saber ao certo do que se trata .
Nascidos em família , entramos no jogo já em curso e com lugar designado “ Nascemos no desejo do Outro “ diz Lacan, somos objetos sensíveis da forma como somos investidos , do modo como nos tratam , da importância que tem o que vivemos , e nos cala fundo como acolhem o que expressamos .
Se não há alguém do outro lado que nos permita poder dizer o que quer que seja , aos poucos vamos aprendendo a mentir , uma inverdade compactuada como senha de participação , já que percebemos rápido , o quão incômodo somos nós aos olhos dos outros .
Em que lugar então nos é dado ser ?
Eis a angústia intraduzível , porque só somos no dois , ou seja , somos na própria divisão que nos estrutura , o ladrão que nos tira como bilhete para nos dar passagem.
O tempo todo somos e não somos , não há nenhuma afirmação que não tenha ao lado uma negação ,” Quem não tiver pecado que se apresente” diz a máxima espiritual , apontando que no campo do Pathos , das afecções sensíveis, sofremos das mesmas coisas e nosso repertório de respostas não parece tão variado .
Mas o que queremos parecer então?
Parecemos o que convém ao mundo , enquanto atores que buscam prestígio nos seus desempenhos , um tipo de teatro onde nossas mazelas e virtudes se revezam a todo tempo, onde a vida finge ser regida pelo bem-estar, ilusão que tem nos custado caro demais , para passar incólume.
Mas não há como não fazer assim, já que a força do mundo é a que melhor representa o campo dos nossos desejos , o campo das nossas perdições para que depois , e diga-se , só depois , possamos nos haver a questão dos acertos , o modo impecável do guerreiro que se prepara para morrer , quando descobre que os limites herdados reprimem o mistério das dimensões.
Talvez o que o tempo nos traga como dádiva, seja a forma como nos re-consideramos , já que a idéia de fim nos confronta com o vigor do mistério que passou embotado ao longo de várias racionalizações e ateísmos cheios de medo , um descuido terrível que nos obriga a tratar o desconhecido como inimigo .
Sendo parte de nossa natureza essencial ,o mistério parece se recusar a qualquer molde estabelecido e sua força desafia os padrões que buscam lhe domesticar , ou seja, nossas reduções não garantem o fim dos sustos , e nem dos impactos de tudo que corta nossa forma retilínea de viver.
Vivemos no dois , sendo um o lado que nos familiarizamos e é o representante de todo sistema do que se conhece, o lado da consciência dita normal ,e do outro o desconhecido , o não representado , o temido , o que pode vir do fundo e trazer agitos incontroláveis .
Citando novamente D.Juan “ Uma das grandes manobras dos espreitadores é contrapor o mistério à estupidez que há em cada um de nós.”
Mas ao mesmo tempo que estamos cercados por um cinturão que parece nos sondar a todo tempo , quase que nos ameaçando e por isso vivemos com medo , por outro insistimos que nossa vida seja apenas a medida do nosso controle .
É como se ao olharmos o que não tem fundo , nos apavorássemos de tal forma , que recorremos de pronto a qualquer medida mais substantiva , um ponto de concretude, que nos devolva nosso senso de identidade familiar .
Isso tem sido um vitória de Pirro , pois ao renegarmos a força do próprio Mistério , nos tornamos reféns do próprio controle , que por sua vez se estica o que pode , para nos forjar uma segurança que só existe em nossa fantasia.
Hoje, nos orgulhamos de sermos adeptos da razão , que tem nos trazido muita coisa boa , muito conforto e facilidades que nos fascinam , e nos acomodam . É como quiséssemos fazer da vida a continuidade de todos nossos confortos e acomodações .Uma premissa enganosa , que em contra-partida nos deixa absolutamente vulneráveis aos encontrões da vida , uma contrariedade que nos tem levado à desistência , o portal das depressões.
No entanto , as raízes do desconhecido não estão no que se conhece e ao se perderem na dimensão do mistério , dependem do alcance da razão para ter algum sentido e aqui está armadilha , pois ao exercitar determinadas decifrações em modos racionais , tomamos a razão como instrumento único e assoberbado.
Não é atoa que de tempos em tempos assistimos suicídios de belos pensadores que foram tomados pelo sinistro da razão e sentiram a impotência profunda perante o Mistério que não se submete , apenas concede e lembra que a ordem é de lá pra cá , ou seja, somos desbravadores do que já existe .
Nossa soberba é fatal , uma requintada vaidade cheia de intelectualismos elaborados e sedutores , como se fossemos nós os donos e pronto , não se discute mais.
São essas vaidades que recheiam nossas vidas e lhe conferem afirmação e poder , como se nossas identidades fossem o ponto de compactuação de nosso prestígio , nosso perigoso jogo auto-importância , nossa ficção egóica que nos martiriza como escravos e faz com que sempre estejamos inseguros e tirânicos.
Ao abrirmos nossa vocação par o Mistério que entregamos lamentavelmente as religiões , somos tocados fundos pela noção deque não é pela importância que se anda no desconhecido, pelo contrário , eis o que diz D.Juan , o grande xamã de Castanheda “ A primeira verdade é que o mundo é como parece , e entretanto não é . Não é tão sólido e real como nossa percepção foi levada a crer , mas também não é uma miragem . O mundo é uma ilusão, como tem sido dito; ele é real por uma lado ,e irreal por outro.”
Talvez como nós , que somos então obrigados a correr a trilha das ilusões para saciar nossos sentidos e paixões, e descobrir que nossa materialidade pode ser nosso maior engano .
Frente ao Mistério , só nos resta vivê-lo , algo que batalhamos por aprender como , já que o óbvio nos é oferecido a preços de pexinxa , enquanto que o extra-ordinário , que nos perturba e nos instiga , é muito mais difícil , talvez para raros como dizia Herman Hesse .
Mas enquanto houver vida , vivamos ...
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