23.1.13

João , o barrucho

 

João era meu vizinho de frente ... da calçada . Morava literalmente do outro lado , que eu ingenuamente achava que era só da calçada .
A princípio , o via mas não me detinha , me parecia mais um desses moradores que descobriram na rua o prazer de ser livre – o que me faz pensar o quanto um lar é pra muitos uma prisão emudecida- e lá estava , justo , bem em frente , na direção , enfim , parecia um lugar convergente .
Abria o portão e .... lá está ele , com seus trapos e papéis colocados em saco plástico , protegidos com empenho, segredo de Estado , perigosas informações em mãos inimigas.
Achava particularmente que já havia louco demais na minha vida , e evitava de certa forma contato íntimo a céu aberto , heresia que iria me custar caro , pois a verdade só nas ruas , ensinava o outro João , o do Rio .
Mas eis que minha neutralidade chula , logo se foi , quando uma garotada endiabrada e perita em sacanear quem lhe parece menos , pegou os documentos perigosos e saíram correndo , para pavor de João , nervoso e agitado , impotente , sem saber o que fazer .

Acho que naquele momento não pude tomar a brincadeira como tal , reagi , cheio de inclusões sociais por dentro , paladino de opressões vividas ao longo de décadas de hospital psiquiátrico, e eu mesmo me surpreendi e a todos , pois exigi não só que devolvessem os documentos sujos, como evitássemos a terceira guerra mundial , pois sei lá o que continham .
Foi o suficiente para um amor nascer do limbo , um lótus , pois a partir daí João e eu nos tornamos parceiros , de que ? .... a vida iria me dizer.
Me chamava de Bhering e eu de João , Bhering e João , nova dupla no mundo da esquizofrenia, que o tinha sequestrado na adolescência , uma hebefrenia , em geral irreversível , ou seja , João não tinha passagem de volta.
Sempre me perguntei porque alguém decide viver sua vida cuidando dos loucos , trabalho ingrato , pouco retorno efetivo , mal pago , problemas sociais seríssimos , uma humanidade a parte , um universo paralelo , que ao longo dos anos tem sido um sufoco só.
Como me orgulho de meus companheiros de luta , pois em meio aos tiroteios pesados , lá estavam eles , sofrendo juntos , apostando na causa e nos consolando mutuamente nas centenas de frustrações do cotidiano psiquiátrico .
É como se precisássemos de uma utopia a cada dia , um soerguer de bandeira , nada de desânimos ou brochuras , lutemos dizia meu amigo Ivo , a causa vale a pena .
Tinha todas essas mensagens dentro de mim , bem gravadas e prontas para serem acionadas ao primeiro disparo , mas confesso , que nunca tinha convivido com um louco , com uma loucura didática , com todos os sintomas clássicos , como amigo e vizinho diário .
Conheci um homem , meu Deus um louco a seu modo, que fundou uma comunidade , chamada Loucódromo e se internou com sua equipe para uma nova metodologia de tratamento , sendo cassado pelo CRM estadual de S.Paulo , já que defendia o tratamento com uma equipe sensitiva , música e dança , e ainda achava Osho , o terapeuta do século .
Recorreu e teve obra consagrada em outros países , mas seu livro “ O universo paralelo da loucura “ é uma ficção para os cânones da ciência .
O conheci em S.Paulo e estudei um pouco com ele , e num almoço , alguém discursava bravamente , dando plena vazão ao seu delírio , para uma plateia assustada e boquiaberta.
João me queria como amigo , irmão ou sei lá o que , pois em curtos períodos tocava campainha me chamando , e seu jeito de tocá-la logo reconhecíamos , pelo exagero do toque.
Eventualmente surtava e só Bhering tinha acesso , uma exclusividade narcísica que me fazia pensar em que tipo de público estava meu sucesso .
Mas um dia , depois de pesquisar de onde tinha vindo João , o alienígena , me deparo com sua mãe que veio visitá-lo na rua e pronto , começava um capítulo surpreendente para todos nós .
Dª Maria gostou de mim e passamos a nos encontrar numa Instituição que trabalho , queria ouvir desta mulher o que na loucura um dia foi uma vida comum , o que foi um sonho, pois suspeito que toda loucura tenha tido pretensão de pertencer e participar .
Fraturas do destino , que nos fazem tão pequenos e indefesos e Dª Maria parecia me confirmar isso, pois era o protótipo da mulher miúda e com certo comprometimento mental , pois quando me via gesticular , hábito onipresente , acompanhava o movimento das minhas mãos , uma cena engraçada , pois sua cabeça descrevia os movimentos de minhas mãos.
Mas Dª Maria tinha uma parceira inseparável , sua filha Virinha, esquizofrênica também , mas bem menos agitada que João , com asseios duvidosos o que tornava nossos contatos um certo martírio , superado pela dor não dita dessa mulher , que possuía mais 2 filhos normais que não se empolgavam com a mãe e menos ainda com os irmãos .
Dª Maria se preocupava em morrer e deixar seus filhos deserdados entregues à própria sorte , desconfiando com certeza, que não seriam acolhidos pela família .
Me contou que era casada com Seu Paulo e que João , tinha estudado e era inteligente , tendo se separado quando ele ainda era púbere e que a partir daí tudo mudara , pois sendo dependente financeiramente do ex-marido passou a morar num tipo pensionato , com Virinha.
As duas juntas eram indescritíveis , pareciam siamesas e atrapalhadas, sendo a conversa , essa que estamos acostumados , um difícil parto de significação. Enfim , um desses rumos impensáveis que a visa toma , onde os encontros com o trágico parecem inescapáveis .
Como observaram a calçada já ficou longa e próxima e nesse ínterim , João é atropelado , ficando com uma ferida exposta indigesta de se ver. Após longa peregrinação , sempre recusada , pois nosso amigo, não era convidativo pra nada , e ainda mais louco , a utopia do hospital geral com enfermaria psiquiátrica .
Num desses , o ortopedista , cercado d belas estagiárias e com voz douta , disse impiedosamente na nossa frente : só cortando , conforme podem ver... . Não , não vi , olhei daqui , olhei dali e não vi . Vi o quanto qualquer sofrimento pode ser matéria de um exibicionismo perigoso , pois , olhei para João e agradeci sua loucura protege-lo , pois se manteve à revelia , alheio ao que se passava.
Fomos embora , eu torturado e João falando , como sempre , parodiando talvez de “ quem fala os males espanta “ , ou “ A palavra ou a morte”dizia Moustafá Safouan , o psicanalista indiano , radicado em Paris.
Dias após recebo uma ligação de Seu Paulo , dizendo que João havia ido para outra cidade e sido preso , e o convocavam a tirá-lo de lá . Imediatamente disse a ele que não , que o removessem e direto para um hospital de ortopedia , pois seu caso era grave , e sendo entre instâncias municipais , haveria maior propabilidade de interná-lo.
E assim foi feito , João foi internado e lindamente operado , sem mutilações , um belo trabalho, diga-se empolgante, pois conseguimos reunir a parte principal da família . Lá estavam , Paulo , Maria , João , Virinha e nós minha família , um encontro com ares de normalidade .
João asseado, deitado na cama , cabelos curtos , me parecia feliz , e aproveitando à ocasião , propus à Seu Paulo que permitisse que eles , Maria , Virinha e João morassem juntos , pois não há como evitar o engodo de uma vida mais feliz , lição que me faria repensar tudo até hoje.
Seu Paulo , um bom homem que havia se cansado de tanta loucura , conforme me havia dito, concordou e assim foi feito , um bom apartamento e lá estava a família junta , mesmo que parcialmente , com a possibilidade de exercitarem todos os hábitos que compõem o cotidiano da vida.
Poderia tomar banho, cozinhar , ver televisão e quem sabe com alguma sorte astrológica , conversarem. Eu me sentindo feliz , achando que essa é a melhor forma de se viver , assim me disseram , assim acreditei , João não .
Logo sentiu falta de sua loucura , de seu mundo de sua rua , bateu em todo mundo , botou as duas pra fora , ameaçou o proprietário e se trancou no apartamento , saindo amarrado pela polícia , acabando ali mesmo meu gozo normótico e das duas também , que voltaram para o pensionato .
Me mudei e João também mudou , até hoje vive na rua e segundo nosso último encontro , vive bem , já sem Dª Maria que foi ao encontro dos seus medos e faleceu , e de Virinha nada sei , uma experiência que como constatam inesquecível .
Atravessei a calçada de volta , suspeitando que a vida desse lado promete mais , mas que o Mistério mesmo , está lá com suas verdades que nos apressamos a limpar do lado de cá .
Estou bem Bhering , estou bem , procurava me assegurar João , me deixando com a terrível sensação que estar bem ou é um caso de amor ou um caso psiquiátrico , esses dois lados que insistem em nos perseguir.

VALEU

Há ou não inveja do pênis?