22.3.12

sortilégios do bem-viver : a criança, o velho e o dinheiro



Num desses domingos límpidos de outuno , onde a vida parece que foi polida e tudo ficou fácil de ver , pois a luminosidade foi regulada para não ferir a sensibilidade , me preparei para um encontro com pessoas notáveis .
Aniversário de minha ex-mulher , com direito à velhos amigos , lá fui eu.
De pronto, uma casa enorme , construída pós-separação que me faz pensar que se sentia oprimida comigo , e no alto , com uma escadaria substituta da igreja da Penha para os pagadores de promessas que resolveram fazer por menos.
Em lá chegando, todo passado logo se fez , mas com feições e afeições renovadas , companheiros de geração , caminhantes com tempo de estrada , era notório que os rostos são fiéis e permitem ver , que o tempo além de belo professor , também é exigente com seus alunos .Envelhecemos todos , mesmo guardando as proporções ,não há como negar.
Misturados então com as novas gerações , o contraste é pura denúncia . Apolos que buscam sua vez , fazem relembrar o início , o como tudo começou . Toda vez que penso nisso , vejo o quanto a morte é sábia . A morte consagra o tempo do realizado e do que ficou por realizar , pois há um compasso apropriado para essas realizações , pois depois, já não interessam tanto. Luta-se pelo que se acha que vale a pena , mas descobre-se depois que nem tudo vale o esforço.
A arena já não comove tanto e os gladiadores se tornam entediantes , prima-se pelo bom-gosto .É o grande salto , o bom -gosto. E só os amigos que entenderam isso permaneceram .
Um éter de qualidade paira no ar, uma tolerância dos que conheceram a desilusão , dos que menos aprisionados pelas expectativas podem achar graça de tudo , pois nada é tão grave quando os limites são mais naturais.
Depois de tantos encontros gostosos e cumprimentos encontro na fila do crepe saboroso , feito com amor e carinho , meu amigo bonitão , Luiz Fernando, a quem dedico estes escritos.
Como confissão particular , gosto de ir para esses encontros sempre com humor apurado e com boa atenção , pois, em geral, tudo me diverte.
De repente, não me lembro exatamente porque, Luiz diz o seguinte , que me impressionou:
" Tenho um amigo que diz, que existem 3 ítens para se conhecer uma pessoa :
1- Sua relação com as crianças
2- Sua relação com os idosos
3- Sua relação com o dinheiro
Achei muito interessante , pois não havia pensado tão sistematicamente nisso.
Redobrei minha atenção e Luiz então desdobra os argumentos " As crianças são o início de tudo , o por onde tudo começa e já passamos.
Os idosos são dependentes e já nos deram, é hora de nós darmos a eles . ´É uma doação de si  mas sem recíprocas e sem palco, pois é uma doação tipo anônima , sem estardalhaços e discreta.
E quanto ao dinheiro , quando chega, muda as relações , aparece o que antes não havia , a desconfiança.
Daí pra lá o tema me segurou e ficou me ladeando.
Resolvi então aceitar o desafio de desdobrá-lo , e agradeço a meu amigo à inspiração.

O que são crianças ?
Se por um lado todos nos sentimos com algum direito a opinar por termos passado por lá , criança é uma criatura a quem estamos devendo novas elocubrações.
Momento fundamental e originário da construção psíquica , se constitui num universo tão extraordinário, que a cada dia nos surpreendemos com novos dados.
Em alguns trabalhos de pesquisas sobre a vida peri-natal descobre-se que a interação criança-mãe é viva e de mensagens recíprocas no plano mental-emocional.
Os estados da mãe são altamente influentes no feto , que por sua vez configura muitos estímulos de forma precoce, como se antecipando ao porvir. Um modo como a vida se defende , defendendo seus protagonistas .
Toda criança é uma criatura cósmica e representante de toda beleza universal da vida , pois independente de nações, ou cidades , inspiram admirações e respeitos pela origem da vida.
Momento único de visão giroscópica e de inocência desinteressada e por isso tudo interessa, é a mente viva do início , que depois se enquadrará.
Convém lembrar que em geral é consagração do amor e representa o fluxo da própria vida , em seu sentido mais misterioso , e a nossa fragilidade , onde nossa dependência é mais exposta e ratifica o quanto precisamos uns dos outros.
Mas e os que espancam crianças?
É difícil não supor que o espancamento , que é a falta de limite do adulto , não seja de certa forma o modo como aquele se revive , em velhos traumas de violência , onde o limite é uma exigência feita mais ao que não é, do que ao que é.
Em cada ato violento é como se a criança fosse agredida pelo que não é , pelo que não nasceu, às vezes o ódio ao que não tem.
Não é como o irmão, não é como deveria ser ,nasceu no momento errado, trouxe novas incubências, enfim, é o próprio fracasso narcísico de quem espanca , que trás consigo a mesma dor mascarada pelo orgulho e pelo ódio.
Óbvio , não se deve confundir violência com limites necessários ao bem comum. Ensina-se a viver em sociedade , a respeitar o  direito dos outros , a se reconhecer o próprio valor , enfim uma construção complexa de amor e paciência , o que anda cada vez mais raros.
Estamos gerando filhos da impaciência e da intransigência que virão pra nossa conta , a um preço alto , pois serão mais rápidos e tornarão nossas flexibilidades verdadeiras carroças do atraso.
Freud dizia que a criança é o pai do homem . Imaginem , como teremos dificuldades para nos livrar dela com suas tiranias e exigências , base da vida amorosa e social.
Estaremos fabricando homens e mulheres sado-masoquistas , com requintes de vinganças que farão do amor um campo do medo e da impotência.
Tudo começa em casa.
E os idosos ?
Em seu livro sobre velhice Simone de Beauvoir diz que quando Buda saiu do palácio de seu pai pela primeira vez numa carruagem , se deparou com uma figura desdentada , curvado e numa bengala e ao perguntar o que era , recebeu como resposta do seu cocheiro, que era um velho . Espantado o nobre princípe , que viria a se tornar uma das figuras mais importantes na história espiritual da humanidade , diz " Que tristeza que os seres fracos e ignorantes , embriagados pelo orgulho próprio da juventude , não vejam a velhice! Voltemos rápido para casa .De que servem os jogos e as alegrias , se sou a morada da futura velhice?"

Na outra ponta da escala linear , lá estão eles, nossos queridos velhinhos , pedindo respeito, amor e paciência também. Já nos deram e a hora é de reconhecimento , o guerreiro depois da luta , as feridas , os desencantos , as perdas, as melancolias , as realizações também, a família, os filhos criados , os netos e a morte na frente , na consciência do tempo que resta.
São nossos ascendentes , vieram primeiro , representam segundo Hellinger a precedência , e desrespeitar isso , é uma agressão a vida .
Já demos vários golpes que mostram isso, sendo o primeiro o torná-los inúteis , sem função social reconhecida , um tipo de anonimato forçado e perigoso que muitas mortes precipitam.
Uma quase total falta de planejamento social, já indica que a velhice é um tipo de demônio mal -visto e renegado. Tendo a queda da matéria como visibilidade, e a morte como pano de fundo , tememos o futuro que se nos afigura , ainda mais numa cultura cheia de mentira jovial , como se fossemos ficar eternamente juvenis e não fossemos morrer.
Obviamente , não envelhecemos de pronto e sim um pouco a cada dia , um estranho movimento oculto que só revela seus efeitos sem se deixar ver diretamente , mas que por ser irreversível , tem a força de um destino comum.
A consideração então com esses companheiros do tempo , é sem dúvida , um modo revelador,  pois aí, talvez esteja o que não aceitemos facilmente , ou recusa à algum tipo de identificação que possa nos comprometer , à diferença de Buda.
A força do tempo com sua flecha que segue , é algo profundamente instigador e temido , pois é verdade , que por não sabermos o que nos espera , projetamos todos os medos possíveis e imaginários , principalmente quando nos ocorre ficarmos dependentes de alguém, por nos faltar a capacidade de cuidar de si mesmo .
Pensar que vamos interferir na vida de alguém , por terem que nos cuidar, é algo que apavora grande parte da população , principalmente porque é uma fase da vida , em que as doenças nos espreitam e podem nos comprometer.
Há idéia de que possamos ser um peso pra quem seja , é dolorosa.
A morte começa a ser pensada, em muitos casos , como alternativa salvadora.
Cheios de saudades do que se foi , e melancolias de futuros incertos , o idoso segue com profundo sentimento de solidão , com insatisfações nem sempre confessáveis , pois já se sente dando trabalho.
Quando tem independência financeira , o que ajuda muito , tem o dinheiro como compensação e por muitas vezes é este seu trunfo .
Num mundo rápido de velocidades desconcertantes , ser velho é penoso.
Falta paciência e as irritabilidades são imediatas , pois velho é símbolo de atraso .
Lembrando que temos que estar sempre adiantados , temos que chegar nesses mal-ditos endereços que ninguém sabe aonde é. A modernidade líquida é assim , esfumaçante , e impegável. O idoso precisa pegar, aproximar , conferir ,pois seu sistema sensorial ficou mais precário , e com isso desacelera , para poder precisar. Mas , a grosso modo isso é uma heresia à pressa da vida moderna , pois temos que chegar.
É incrível como essa fase parece trazer , uma necessidade de explorar o mundo da sensibilidade , justo porque a diminuição do ritmo , trás o quanto se andou sem ver ou sem sentir . Há um tipo de reparação de si , um aprofundamento que o coração consagra , pois já não se tem que dizer como é , nem impor regras , nem muito vigor do como deve ser.
É um convite à um tipo de observação , um modo de perceber sem rigor , um tipo de descontração, que ajuda a se reconectar com o início , num exercício do como tudo poderia ter sido , caso fosse .
Tem-se aí a impressão que a vida tem mais opções viáveis do que se pôde ver e oferecer , é o que os avós numa grande generosidade da vida , pode então oferecer à seus netos queridos.
Muitos, procuram opções em grupos, que hoje ficaram consagrados , lugar onde se dança, conversa ,e se encontra o espelho que busca solidariedades por identificação.
Enfim, se carrega uma vida , uma história de si e de todos que nos frequentaram , todos que vivem em nós , todos que morreram em nós.
Diria então que a velhice é um lugar , que talvez estabeleça solilóquios onde o diálogo já não se faça tanto .
Aprender a arte profunda do Vivo , é a forma mais eficaz de passar por esta etapa , pois o segredo da vida começa a ser visto como modéstia , um lugar que permite se escutar os silêncios , as pausas , e as figurações que o inusitado vai desenhando em formas variadas.
Uma estética marginal , mas de larga sabedoria .
O velho é um doar sem fama , sem holofotes , pois requerem doações numa ordem diferente da que nos acostumamos , não há o que pedir de volta, pois já recebemos ou não.

Talvez os que acham que não receberam , se sintam lesados de ter que darem e em muitas relações este é um inferno particular , sem soluções rápidas, de dívidas e culpas , que nem a morte libera.
E o dinheiro ?
O dinheiro é a paranóia , diz Félix guatarri , o psiquiatra italiano , amigo de Deleuze.
E é mesmo . Aonde entra o dinheiro as contabilidades se assanham e o medo de ser lesado floresce . Como não temos um passado de transparências , e sabemos das falcatruas do mundo em sua voracidade pelo dinheiro , é fácil desconfiar.
O mundo é uma grande desconfiança , e o dinheiro só faz aumentá-la.
O dinheiro é a posse. Tudo de possessivo lá vem . Se perdermos a ordem de grandeza que nos confere generosidade , dinheiro é tormento . E tome de gente atormentada , cheias de medo de serem lesadas e passadas pra trás, gente para quem o outro é suspeito de início e sem absolvição íntegra.
Todas as formas de associação no convívio , podem ter o destino que a dimensão mal-dita do dinheiro induz. Seja o casal que pede ressarcimento ao outro pelo dinheiro , seja a familia que após a morte de alguém importante , imediatamente vai aos finalmentes, e cada um quer o seu rápido , ou mesmo tragédias que mediante dores intensas só têm como opção serem traduzidas em dinheiro.
Diz um autor que não me lembro bem" o dinheiro conseguiu o que Deus não conseguiu", apontando que a nível do dinheiro , até inimigos convergem interesses e a humanidade encontra um elo em comum.
É no dinheiro que vivemos nossas mesquinharias inconfessadas e grandezas pretendidas , nem sempre efetivas . Típico portador de uma lógica atrasada de uma suposta sobrevivência , é um lugar farto de desculpas e justificativas , pois amparado por um sistema que consagra os vencedores e desmerece os menos favorecidos , é o fetiche destacado da injustiça e da inveja .
Uma ordem social com estas premissas não deixa de ir ou de produzir ,mas põe a  descoberto setores tão importantes da alma , que se por um lado ficamos mais ricos , por outro nossa miséria espiritual é imensa.
Já tentamos tudo , para descobrir que se o dinheiro não for expressão daquilo que a alma tem de humana , uma ordem humana sem restrições universais , utopia descartada que a tal globalização tenta resgatar por outro lugar materialista, e com promessas de bens tecnológicos compartilhados,  teremos dificuldades de construir um elo que suporte , ou nos ajude a suportar o preço de um civilidade manca e excludente.
O dinheiro é um meio poderoso , mas um meio , não exatamente um fim , é restritivo demais, traiçoeiro demais , para nos garantir o vôo delicado do amor que a alma busca em sua realização divina .
Que seja então no possível , um meio que nos traduza em nossas possessividades sintomáticas , que levou Freud a associá-lo com a retentividade anal , onde o grande e o escatológico se encontram para se prenderem ou se diferenciarem.
Tomado como grandeza é capaz de coisas incríveis e de gozo material compartilhado , bem como, uma ordenação qualificada da vida em termos de ofertas . Imagino um bom hospital , uma boa casa , boas estradas, belos parques, uma civilidade ética e estética com o brilho que a matéria possibilita quando bem polida.
Mas o dinheiro pede justiça o tempo todo , pois mostra o contraste que nenhuma ordem econômica, por melhor que seja pode explicar.
O dinheiro é o modo como Deus deixa o mundo aos homens para se exercitarem em suas capacidades , e na difícil tarefa de unir dinheiro e amor.
Luiz , um belo enólogo,ao citar seu outro amigo, a quem agradeço, me deu este presente.
Gostaria então de erguer uma bela taça de vinho , um vinho cheio de segredos da natureza ,e que sempre possibilitou aos homens celebrarem e fazerem brindes ao que a vida tem refinamento : os amigos.
Pois acrescentaria modestamente a lista dos ítens, o modo como cada um brinda e agradece, o que a vida nos oferece a cada dia .






















Há ou não inveja do pênis?