5.2.13

PARROLO , O BEBADO DESEQUILIBRISTA

 

Sempre gostei do oculto , aquela incrível sensação não-conceitual de que as extensões continuam , que há um outro lado ( acho um lado só chatíssimo ), que tudo pode tomar outro modo , enfim, apesar das insistências dos homens , seja, gnósticos , religiosos , ateus , gosto do outro lado e pronto , chamem à Constituição que me garante o exercício de escolher à face do meu culto .

Este outro lado no entanto , me fascina sua vivacidade , pois como não viajar com Freud em sua descoberta conceitual do inconsciente , a coisa já estava lá e aí precisa de alguém que diga onde está e como está , Jung depois diz que há mais há uma dimensão coletiva que rege simbolicamente a vida através de arquétipos , pois em Lacan abre-se de vez a via da linguagem .

Obviamente o que se diz é que o véu que nos recobre recai a cada rodada e assim diminuímos nossa ignorância a apostamos com esperança ávida que nossa ciência ande logo , não demore muito , pois estamos meio ferrados , com imaginários apocalípticos.

Mas desconfio pra mim mesmo , sem ofender ninguém , que este outro lado está aqui mesmo e assim procuro vê-lo a cada dia , Spinoza gosta de mim me disseram e viver com o oculto vivo a cada dia é minha ficção , minha fantasia , minha crença ou minha paixão , uma forma nem melhor nem pior do que outras , apenas um modo .

Cultivo plantas , e observo o oculto e digo , lá está ele , ontem não estava , eis a flor maravilhosa , sedutora e lá se vai , efêmera como veio . Me rendo ao efêmero , me desapega , me dá e me tira , não com gesto brusco mas de forma suave me ensina que admirar é um refinamento dos sentidos.

Nada tenho contra ficarmos cada vez mais inteligentes , mas convém observar que essa mística , esse ardor , este gosto de passagem que os poetas fazem de musa , não pode se reduzir ao saber convencional , encanto não se estreita .

Estava eu lendo um livrinho fino , que engana muito . É considerado um tratado ocultista consagrado e bastante citado “ A Caminho da Luz” de Mabel Collins , um livro que dizem foi recebido , não escrito pela autora .

Fui lê-lo para receber os ensinos e logo me deparo com a primeira chamada “ Mata à diferença” , o que logo me chocou , pois tenho à diferença como fundamento da liberdade.

Leitura precipitada , logo percebi , pois o ensinamento referia-se ao que nós artificialmente consideramos diferentes, ao custo de estabelecermos barreiras que ao mapearem à vida dessa forma , gera doenças e violências , o preço do insuportável .

Tomando o ensinamento a sério , fiquei tentando vê-lo  me vendo , única maneira que considero válida pra este tipo de matéria e a oportunidade logo viria , de forma contundente .

Uma segunda-feira pela manhã , resolvo estrear uma calça bege que me pareceu de acordo com a claridade do sol . Sou daqueles que começar a semana com entusiasmo é importante, gosto de começos animados , eis-me aqui digo eu pra quem me escuta , pois suponho um público invisível .

Atendi algumas pessoas e em torno de 10 h da manhã , desço para atender uma pessoa em casa e me deparo com um homem caído na calçada do consultório , dificultando à passagem ,e completamente nocauteado , já que estava visivelmente embriagado .

Já o havia visto outras vezes , pois trabalho numa rua que é um pátio ... psiquiátrico , rua de passagem e cheia de transeuntes agitados , alguns pedintes , outros mendigos , como Parrolo, e gente que depois da noitada estica por lá , na loja de conveniência.

Parrolo é parte da rua , incorporado ao cenário , ator diário do mesmo script , e é raro vê-lo de pé , pois vive caído de tão bebum . É feio , nenhum asseio  e tipo melequento , um sem fim de des-razões repugnantes .

É desses anônimos , sem destino , identidade ou utilidade , ninguém conta com ele e ele muito menos se faz contar , um cardinal vazio , ou seja , pula-se .

Desço , aprecio o sol , abro portão dou de cara com ele que eu sequer sabia o nome e cheio de repugnâncias , levanto a perna pra passar , quando ... o oculto com sua linguagem vivaz , resolve me ensinar , ou melhor exemplificar do que se tratava a lição .

Parrolo sai de seu coma , levanta cabeça rápido e me oferece um escarro gosmento que gentilmente escolheu para comemorar minha nova calça , cuspiu e ... caiu duro de novo sem saber o que tinha feito .

Mata à diferença martelava à lição , como se adivinha-se que meu desejo era de matar o próprio, fiquei pasmo , ninguém viu , sem comentários , eu e aquele desacordado a meus pés , o pária anônimo e indesejável e o esotérico puto , tentando raciocinar .

De repente , e sei lá como, me enchi de júbilo ( eta! palavrinha nobre), e a ficha caiu e com pouco mais de coragem eu teria deitado ali mesmo , embora Parrolo não ajudasse muito a ninguém a fazer conversão a céu aberto com seu cheiro desagradável .

O que me veio é que aquela criatura ali caída eu evitava sempre , minhas repugnâncias sempre chegavam primeiro , de formas que eu me esquivava me fazendo bem diferente dele , ou preservando com vigor às diferenças que aprendi como ator social .

Ele lá e eu cá , as margens que não se tocam mas que se precisam, viria eu a descobrir depois , como dizia um mestre do lado de cá , Lacan ,” análise mesmo só depois”. Pois a partir daí me interessei por ele , e fui ao seu encontro .

Amigo , disse eu sempre vejo você por aqui e não sei seu nome ... Mauro , me disse entre os dentes . Me dei conta que não sabia mais pra onde ir , como se um contato pudesse se resumir a uma única pergunta .

Me ocorreu me apresentar , eu sou Alex ...e daí pra lá eu seria Carlinho e ele Parrolo , pois não podia mais me ver que lá vem ele , em geral, me pedir dinheiro e me cumprimentar , não sei em qual ordem exatamente.

Mas não só . Um dia me chega com um presente pra me dar , uns pacotinhos redondos de presunto que tinha recebido . Queria dizer que não como presunto e não consegui , seria um desrespeito com sua alegria de poder me oferecer , uma devolução ( leiam em meu blog “ As devoluções”). Tinha conseguido no supermercado , um tipo “ toma antes que o prazo de validade se esgote “, mas a validade do gesto , essa, impagável .

A diferença não consegui matá-la , mas percebi que recebe-lo me fez bem , me contou em suas truncadas palavras que tinha um irmão , mas seu gosto mesmo é viver na rua e como quer , ou seja, mais uma vez desconfio que esta vida operária  de regras , horários e convenções , é um mundo de imposições detestado por muitos ,que por razões infindas saem e vão para margem, pagando o preço alto que parece ter.

Parrolo era o porre na segunda de manhã , ou o coma público na terça a tarde , enfim, sua vida se regia por horários próprios , como seu almoço às 17 h , hora que conseguia as sobras do dia, e me lembro o quanto tinha curiosidade por sua rotina , o que me dava idéia da minha , quase litúrgica , cheio de horários cronometrados.

Recentemente sumiu e ouvi rumores de sua morte , algo prognosticado com facilidade quando não se serve pra nada na produção social , ou quando já se vê a morte na criatura , que como disse adorava estar na inconsciência horizontal .

Indo à uma enfermaria que visito uma vez por mês , onde senhoras , em geral, moribundas, vivem entregues aos infortúnios do destino e na dor da falta de alguém , toco o elevador para o quarto andar onde era a enfermaria.

O elevador sem eira , nem beira ( vide sem eira nem beira nesse blog), parou no terceiro andar e eu me dei conta que era uma enfermaria de homem e me dispunha a subir um lance de escada , quando meus olhos dão de cara com.... Parrolo , deitado numa cama , asseado e operado do estrago que teve ao ser atropelado por um ônibus.

Mais uma vez a vida me unia a esse homem , dessa vez com tamanha emoção , pois quando me viu , sorriu acabrunhado , talvez porque já não tenha do que sorrir e disse... Carlinho , quase caí duro , agradecendo ao oculto esses encontros fantásticos , nada formal ,que fazem da diferença,  o êxtase da proximidade .

Lá está ele e aqui estou eu , ligados , pois logo irei vê-lo de novo , e quando perguntei o que precisava me disse sem cerimônias : “ voltar pra rua ,gosto de liberdade”.

Agradeço muito as tais sincronicidades que Jung belamente estudou , e cada vez mais sinto que o “ eu” é uma fronteira necessária , até não ser mais , pois matar à diferença me pareceu matar o que em mim quer ser diferente sem ser , pois retira a possibilidade de abrigar um semelhante diferente , mas profundamente enraizado , como eu , no mesmo drama humano.

A título de gozação , meu amigo me perguntou o porque dessa estranha atração por figuras tão desafortunadas ? Como meu amigo é dessas criaturas espertas e inteligentes que fazem perguntas inteligentes também , disse que ia pensar , um dia respondo...

VALEU

 

 

 

 

 

 

 

Há ou não inveja do pênis?