Sempre gostei do oculto , aquela incrível sensação
não-conceitual de que as extensões continuam , que há um outro lado ( acho um
lado só chatíssimo ), que tudo pode tomar outro modo , enfim, apesar das
insistências dos homens , seja, gnósticos , religiosos , ateus , gosto do outro
lado e pronto , chamem à Constituição que me garante o exercício de escolher à
face do meu culto .
Este outro lado no entanto , me fascina sua vivacidade ,
pois como não viajar com Freud em sua descoberta conceitual do inconsciente , a
coisa já estava lá e aí precisa de alguém que diga onde está e como está , Jung
depois diz que há mais há uma dimensão coletiva que rege simbolicamente a vida
através de arquétipos , pois em Lacan abre-se de vez a via da linguagem .
Obviamente o que se diz é que o véu que nos recobre recai a
cada rodada e assim diminuímos nossa ignorância a apostamos com esperança ávida
que nossa ciência ande logo , não demore muito , pois estamos meio ferrados ,
com imaginários apocalípticos.
Mas desconfio pra mim mesmo , sem ofender ninguém , que este
outro lado está aqui mesmo e assim procuro vê-lo a cada dia , Spinoza gosta de
mim me disseram e viver com o oculto vivo a cada dia é minha ficção , minha
fantasia , minha crença ou minha paixão , uma forma nem melhor nem pior do que
outras , apenas um modo .
Cultivo plantas , e observo o oculto e digo , lá está ele ,
ontem não estava , eis a flor maravilhosa , sedutora e lá se vai , efêmera como
veio . Me rendo ao efêmero , me desapega , me dá e me tira , não com gesto
brusco mas de forma suave me ensina que admirar é um refinamento dos sentidos.
Nada tenho contra ficarmos cada vez mais inteligentes , mas
convém observar que essa mística , esse ardor , este gosto de passagem que os
poetas fazem de musa , não pode se reduzir ao saber convencional , encanto não
se estreita .
Estava eu lendo um livrinho fino , que engana muito . É
considerado um tratado ocultista consagrado e bastante citado “ A Caminho da
Luz” de Mabel Collins , um livro que dizem foi recebido , não escrito pela
autora .
Fui lê-lo para receber os ensinos e logo me deparo com a
primeira chamada “ Mata à diferença” , o que logo me chocou , pois tenho à
diferença como fundamento da liberdade.
Leitura precipitada , logo percebi , pois o ensinamento
referia-se ao que nós artificialmente consideramos diferentes, ao custo de estabelecermos
barreiras que ao mapearem à vida dessa forma , gera doenças e violências , o
preço do insuportável .
Tomando o ensinamento a sério , fiquei tentando vê-lo me vendo , única maneira que considero válida
pra este tipo de matéria e a oportunidade logo viria , de forma contundente .
Uma segunda-feira pela manhã , resolvo estrear uma calça
bege que me pareceu de acordo com a claridade do sol . Sou daqueles que começar
a semana com entusiasmo é importante, gosto de começos animados , eis-me aqui
digo eu pra quem me escuta , pois suponho um público invisível .
Atendi algumas pessoas e em torno de 10 h da manhã , desço
para atender uma pessoa em casa e me deparo com um homem caído na calçada do
consultório , dificultando à passagem ,e completamente nocauteado , já que
estava visivelmente embriagado .
Já o havia visto outras vezes , pois trabalho numa rua que é
um pátio ... psiquiátrico , rua de passagem e cheia de transeuntes agitados ,
alguns pedintes , outros mendigos , como Parrolo, e gente que depois da noitada
estica por lá , na loja de conveniência.
Parrolo é parte da rua , incorporado ao cenário , ator
diário do mesmo script , e é raro vê-lo de pé , pois vive caído de tão bebum .
É feio , nenhum asseio e tipo melequento
, um sem fim de des-razões repugnantes .
É desses anônimos , sem destino , identidade ou utilidade ,
ninguém conta com ele e ele muito menos se faz contar , um cardinal vazio , ou
seja , pula-se .
Desço , aprecio o sol , abro portão dou de cara com ele que
eu sequer sabia o nome e cheio de repugnâncias , levanto a perna pra passar ,
quando ... o oculto com sua linguagem vivaz , resolve me ensinar , ou melhor
exemplificar do que se tratava a lição .
Parrolo sai de seu coma , levanta cabeça rápido e me oferece
um escarro gosmento que gentilmente escolheu para comemorar minha nova calça ,
cuspiu e ... caiu duro de novo sem saber o que tinha feito .
Mata à diferença martelava à lição , como se adivinha-se que
meu desejo era de matar o próprio, fiquei pasmo , ninguém viu , sem comentários
, eu e aquele desacordado a meus pés , o pária anônimo e indesejável e o
esotérico puto , tentando raciocinar .
De repente , e sei lá como, me enchi de júbilo ( eta!
palavrinha nobre), e a ficha caiu e com pouco mais de coragem eu teria deitado
ali mesmo , embora Parrolo não ajudasse muito a ninguém a fazer conversão a céu
aberto com seu cheiro desagradável .
O que me veio é que aquela criatura ali caída eu evitava
sempre , minhas repugnâncias sempre chegavam primeiro , de formas que eu me
esquivava me fazendo bem diferente dele , ou preservando com vigor às
diferenças que aprendi como ator social .
Ele lá e eu cá , as margens que não se tocam mas que se
precisam, viria eu a descobrir depois , como dizia um mestre do lado de cá ,
Lacan ,” análise mesmo só depois”. Pois a partir daí me interessei por ele , e
fui ao seu encontro .
Amigo , disse eu sempre vejo você por aqui e não sei seu
nome ... Mauro , me disse entre os dentes . Me dei conta que não sabia mais pra
onde ir , como se um contato pudesse se resumir a uma única pergunta .
Me ocorreu me apresentar , eu sou Alex ...e daí pra lá eu
seria Carlinho e ele Parrolo , pois não podia mais me ver que lá vem ele , em
geral, me pedir dinheiro e me cumprimentar , não sei em qual ordem exatamente.
Mas não só . Um dia me chega com um presente pra me dar ,
uns pacotinhos redondos de presunto que tinha recebido . Queria dizer que não
como presunto e não consegui , seria um desrespeito com sua alegria de poder me
oferecer , uma devolução ( leiam em meu blog “ As devoluções”). Tinha
conseguido no supermercado , um tipo “ toma antes que o prazo de validade se
esgote “, mas a validade do gesto , essa, impagável .
A diferença não consegui matá-la , mas percebi que recebe-lo
me fez bem , me contou em suas truncadas palavras que tinha um irmão , mas seu
gosto mesmo é viver na rua e como quer , ou seja, mais uma vez desconfio que
esta vida operária de regras , horários
e convenções , é um mundo de imposições detestado por muitos ,que por razões
infindas saem e vão para margem, pagando o preço alto que parece ter.
Parrolo era o porre na segunda de manhã , ou o coma público
na terça a tarde , enfim, sua vida se regia por horários próprios , como seu
almoço às 17 h , hora que conseguia as sobras do dia, e me lembro o quanto
tinha curiosidade por sua rotina , o que me dava idéia da minha , quase
litúrgica , cheio de horários cronometrados.
Recentemente sumiu e ouvi rumores de sua morte , algo
prognosticado com facilidade quando não se serve pra nada na produção social ,
ou quando já se vê a morte na criatura , que como disse adorava estar na
inconsciência horizontal .
Indo à uma enfermaria que visito uma vez por mês , onde
senhoras , em geral, moribundas, vivem entregues aos infortúnios do destino e
na dor da falta de alguém , toco o elevador para o quarto andar onde era a
enfermaria.
O elevador sem eira , nem beira ( vide sem eira nem beira
nesse blog), parou no terceiro andar e eu me dei conta que era uma enfermaria
de homem e me dispunha a subir um lance de escada , quando meus olhos dão de
cara com.... Parrolo , deitado numa cama , asseado e operado do estrago que
teve ao ser atropelado por um ônibus.
Mais uma vez a vida me unia a esse homem , dessa vez com
tamanha emoção , pois quando me viu , sorriu acabrunhado , talvez porque já não
tenha do que sorrir e disse... Carlinho , quase caí duro , agradecendo ao
oculto esses encontros fantásticos , nada formal ,que fazem da diferença, o êxtase da proximidade .
Lá está ele e aqui estou eu , ligados , pois logo irei vê-lo
de novo , e quando perguntei o que precisava me disse sem cerimônias : “ voltar
pra rua ,gosto de liberdade”.
Agradeço muito as tais sincronicidades que Jung belamente
estudou , e cada vez mais sinto que o “ eu” é uma fronteira necessária , até
não ser mais , pois matar à diferença me pareceu matar o que em mim quer ser
diferente sem ser , pois retira a possibilidade de abrigar um semelhante
diferente , mas profundamente enraizado , como eu , no mesmo drama humano.
A título de gozação , meu amigo me perguntou o porque dessa
estranha atração por figuras tão desafortunadas ? Como meu amigo é dessas
criaturas espertas e inteligentes que fazem perguntas inteligentes também ,
disse que ia pensar , um dia respondo...
VALEU