Continuando então a reflexão postada no artigo anterior (que
diga-se , não sei qual) partimos então do bater da hora , o momento intenso,
profundo, que se instala como uma névoa , um tipo de embaçamento que vai se
manifestando sem que possamos controlar .
Algo se altera à revelia, como um marco , um momento em que
a ruptura se estabelece, e a partir dali , a corda se rompe e o barco desliza,
sem que o dono possa imediatamente trazê-lo de volta , algo como “os dados
estão lançados” , há de se viver os resultados.
A idéia de que nossa vida possa ser regida por algo adiante
, não nos é tão familiar , já que nossas determinações parecem vir todas do
passado , ou seja , do que temos registro , o que se inscreve na memória , nos
dando um senso de continuidade , que para muitos estudiosos , é a nossa maior
ilusão .
Com o passado temos um tipo de intimidade mnêmica , um tipo”
juro que foi assim” , ou um grau de certeza , já que afirmamos que em tudo que
já nos passou , estivemos lá.
Estivemos mesmo?
Eis uma estranha indagação, inconcebível para uma padrão
mental que alicerçado em categorias de certezas, recusa enfaticamente à
possibilidade de ações no plano psíquico que não tenham sido induzidas por um
sujeito , mesmo que esse sujeito seja partido , ou inconsciente , como diz a
Psicanálise .
No entanto , também seria equivocado , dizer que nossa vida
seja apenas a expressão dos nossos
quereres, pois nem sempre se muda por que se quer , e sim porque já não temos
como conter o que saiu do lugar , já que depois de tanto in-decidir , a corda
ao se romper , já não nos deixa outra alternativa, senão largar para seguir.
A figuração de seguir
nos comove , seja na literatura ou no cinema , ficamos impressionados
com os personagens errantes , aqueles que parecem nunca ter endereços definidos
, ou mesmo de morarem em lugar nenhum.
É como se encontrássemos o que temos de fluido , um
contra-ponto dos modos pesados que nossa solidez nos impõe , a vida que
materializa suas regulações como ordens inconteste , nos dando a impressão que
nosso script , é um tipo decoreba , uma cartilha de sinalizações que tem o
mérito de nos levar aos mesmos lugares de forma mais econômica.
Mudar é suportar o atrito com o que se tem de mais rígido .
E nossa rigidez é a forma mais arcaica, do quanto nossa
identidade primitiva ainda é indiferenciada , o quanto qualquer vivência nos
faz sofrer em termos simbióticos , como se fossemos protagonistas de uma
constante ameaça de destruição , ou seja, tudo que tenha o poder de nos
desautorizar, tudo que torne nossa autoridade impotente em nos salvar.
Em nosso nível primário o que nos interessa é manter pra nos
assegurar da continuidade , da perspectiva de que as sequências não nos
decepcionarão , e de que nosso viver é o modo manifesto de nossa ilusão
sequencial .
A neurose é uma ficção sequencial , um apelo tão forte às
figurações lineares , que a milênios sofremos desse modo de doutrinação ,
postulados que ao mesmo tempo que nos oferece abrigo , nos deixa à deriva ,
quando temos viver rupturas atéias , aquelas que não se importam com as
liturgias de nossas crendices particulares.
Uma vez que a hora bate , sacrifica-se as sequências
habituais , e vive-se o medo do escuro , a opacidade do que chega , já que nos
instiga e nos atemoriza , uma paranóia com gosto de que algo acabou, e que nos
é extremamente doloroso te que largar.
Ir adiante, ao mesmo tempo, que parece o clamor de nossa
liberdade , é também um tipo de sentença de morte, em que sentimos o presságio de nosso fim , um
certo desespero do que será de nós ,já que despossuídos de certezas e cheios de
dúvidas por todos os cantos de nosso ser, tentamos nos agarrar a qualquer fiapo
de certeza , lugar onde nos tornamos sensíveis a qualquer profeta que nos diga
o que fazer.
No que a corda se rompe e o barco começa a se afastar ,
somos tomados pela re-visão feita pelas culpas e dívidas que carregamos com
relação as nossas competências , isto é, onde nossa presença pode estar e se
dizer , ou onde nos escondemos em nosso-faz-de-conta habitual e buscamos o
emudecimento como refúgio .
Nossa simbiose implica em rever contratos de convívio ,
lugares onde depositamos omissões e cultivamos a surdez como meio de não se inserir , único meio pelo
qual a vida pode nos perdoar , já que mudar é buscar uma outra forma de
inserção , uma redenção do que é restrito e exigente , e tomada das grandezas
como “entrance” no que é maior e generoso .
Toda crise é um confronto com que é mesquinho e particular
demais , um empuxo para um devir de maior abrangência e com-sideração , um
aprender que não está nos livros e cujo professor é o valor da própria questão.
Aqui tudo precisa ser visceral , algo mais próximo das
entranhas , lugar de onde se veio , a melhor forma de saber pra onde se vai ,
já que o fim e o início estão sempre , um término é também um recomeço .
A morte de si é um funeral narcísico , uma ruptura com todas
as fantasias sobre si construídas ao longo da vida , um sistema de compensações
e de exigências que fazem do amor o lugar de aberrações e de renegações de
limites.
No que sou destituído , não há como não encolher , uma
redução de tamanho que pode causar regressões literais , um sentimento de
incapacidade de continuar , que nos faz questionar o quanto crescer é uma
exigência , mais do que um desenvolvimento compassado de fases psíquicas.