22.10.12

Quando bate a hora , ultrapassagem e morte na estrada de si


 
Continuando então a reflexão postada no artigo anterior (que diga-se , não sei qual) partimos então do bater da hora , o momento intenso, profundo, que se instala como uma névoa , um tipo de embaçamento que vai se manifestando sem que possamos controlar .

Algo se altera à revelia, como um marco , um momento em que a ruptura se estabelece, e a partir dali , a corda se rompe e o barco desliza, sem que o dono possa imediatamente trazê-lo de volta , algo como “os dados estão lançados” , há de se viver os resultados.

A idéia de que nossa vida possa ser regida por algo adiante , não nos é tão familiar , já que nossas determinações parecem vir todas do passado , ou seja , do que temos registro , o que se inscreve na memória , nos dando um senso de continuidade , que para muitos estudiosos , é a nossa maior ilusão .

Com o passado temos um tipo de intimidade mnêmica , um tipo” juro que foi assim” , ou um grau de certeza , já que afirmamos que em tudo que já nos passou , estivemos lá.

Estivemos mesmo?

Eis uma estranha indagação, inconcebível para uma padrão mental que alicerçado em categorias de certezas, recusa enfaticamente à possibilidade de ações no plano psíquico que não tenham sido induzidas por um sujeito , mesmo que esse sujeito seja partido , ou inconsciente , como diz a Psicanálise .

No entanto , também seria equivocado , dizer que nossa vida seja apenas  a expressão dos nossos quereres, pois nem sempre se muda por que se quer , e sim porque já não temos como conter o que saiu do lugar , já que depois de tanto in-decidir , a corda ao se romper , já não nos deixa outra alternativa, senão largar para seguir.

A figuração de seguir  nos comove , seja na literatura ou no cinema , ficamos impressionados com os personagens errantes , aqueles que parecem nunca ter endereços definidos , ou mesmo de morarem em lugar nenhum.

É como se encontrássemos o que temos de fluido , um contra-ponto dos modos pesados que nossa solidez nos impõe , a vida que materializa suas regulações como ordens inconteste , nos dando a impressão que nosso script , é um tipo decoreba , uma cartilha de sinalizações que tem o mérito de nos levar aos mesmos lugares de forma mais econômica.

Mudar é suportar o atrito com o que se tem de mais rígido .

E nossa rigidez é a forma mais arcaica, do quanto nossa identidade primitiva ainda é indiferenciada , o quanto qualquer vivência nos faz sofrer em termos simbióticos , como se fossemos protagonistas de uma constante ameaça de destruição , ou seja, tudo que tenha o poder de nos desautorizar, tudo que torne nossa autoridade impotente em nos salvar.

Em nosso nível primário o que nos interessa é manter pra nos assegurar da continuidade , da perspectiva de que as sequências não nos decepcionarão , e de que nosso viver é o modo manifesto de nossa ilusão sequencial .

A neurose é uma ficção sequencial , um apelo tão forte às figurações lineares , que a milênios sofremos desse modo de doutrinação , postulados que ao mesmo tempo que nos oferece abrigo , nos deixa à deriva , quando temos viver rupturas atéias , aquelas que não se importam com as liturgias de nossas crendices particulares.

Uma vez que a hora bate , sacrifica-se as sequências habituais , e vive-se o medo do escuro , a opacidade do que chega , já que nos instiga e nos atemoriza , uma paranóia com gosto de que algo acabou, e que nos é extremamente doloroso te que largar.

Ir adiante, ao mesmo tempo, que parece o clamor de nossa liberdade , é também um tipo de sentença de morte,  em que sentimos o presságio de nosso fim , um certo desespero do que será de nós ,já que despossuídos de certezas e cheios de dúvidas por todos os cantos de nosso ser, tentamos nos agarrar a qualquer fiapo de certeza , lugar onde nos tornamos sensíveis a qualquer profeta que nos diga o que fazer.

No que a corda se rompe e o barco começa a se afastar , somos tomados pela re-visão feita pelas culpas e dívidas que carregamos com relação as nossas competências , isto é, onde nossa presença pode estar e se dizer , ou onde nos escondemos em nosso-faz-de-conta habitual e buscamos o emudecimento como refúgio .

Nossa simbiose implica em rever contratos de convívio , lugares onde depositamos omissões e cultivamos a surdez  como meio de não se inserir , único meio pelo qual a vida pode nos perdoar , já que mudar é buscar uma outra forma de inserção , uma redenção do que é restrito e exigente , e tomada das grandezas como “entrance” no que é maior e generoso .

Toda crise é um confronto com que é mesquinho e particular demais , um empuxo para um devir de maior abrangência e com-sideração , um aprender que não está nos livros e cujo professor é o valor da própria questão.

Aqui tudo precisa ser visceral , algo mais próximo das entranhas , lugar de onde se veio , a melhor forma de saber pra onde se vai , já que o fim e o início estão sempre , um término é também um recomeço .

A morte de si é um funeral narcísico , uma ruptura com todas as fantasias sobre si construídas ao longo da vida , um sistema de compensações e de exigências que fazem do amor o lugar de aberrações e de renegações de limites.

No que sou destituído , não há como não encolher , uma redução de tamanho que pode causar regressões literais , um sentimento de incapacidade de continuar , que nos faz questionar o quanto crescer é uma exigência , mais do que um desenvolvimento compassado de fases psíquicas.

Há ou não inveja do pênis?