Crônica de uma dupla bem-sucedida
"A elite cultural distanciou-se do resto de nós pelo gosto artístico seletivo e por critérios estritamente definidos-em clara oposição ao nosso gosto sem discernimento e caracterizado por flagrante oposição de critérios. Foi essa oposição que sustentou a divisão entre a "alta cultura" e a" baixa cultura" (popular ou de massas ) Pierre Bourdieu citado Boman em " 44 cartas do mundo líquido moderno".
Eis uma reflexão sobre como os símbolos da baixa cultura ( feijão com arroz) promovem uma militância subversiva e alça às mesas nobres , num tipo de socialismo generoso e com armas do requinte e do paladar.
O FEIJÃO COM ARROZ :
Na verdade não é uma mistura , não , de forma alguma .É dessas combinatórias onde a vida resolve se juntar e mostrar que dá certo,uma assertiva da atração .
Em geral , o feijão por baixo e o arroz por cima , sem dúvida mais elegante do que o feijão esparramado por cima , meio lambuzando o cenário .
O arroz sendo branco realça bem a superfície enquanto o feijão dá um tipo de vinil irregular ao fundo , ao mesmo tempo que assanha velhas reminiscências transgeracional e diga-se , tendo como senha do tempo, especialmente o tempêro .
O tempêro , a velha magia que sempre moveu o mundo, talvez porque em contraste com o de sempre, chamava à diferença e o aguçamento dos sentidos,o prazer oral , para muitos o único prazer dos Deuses , o prazer por excelência , já que começamos por ele e nunca mais saímos.
Ao serem colocados no prato garantem o substantivo , garantia do básico como alicerce , como se a arquitetura dos detalhes , só pudesse ter seu realce no depois , o requinte do a mais , sempre bem vindo , mas um tipo de agregado mais superficial , que abre a brecha para uma nova combinação.
Os agregados , saladas, proteínas como carnes em geral , as massas , ao mesmo tempo que representam uma identidade histórica , sofrem um tipo de sujeição particular quando há o feijão com arroz , que compassam o fundo , o gosto primário, onde o Brasil é terra.
Saboreia-se a terra de uma forma única , derivações do coito brasilis, onde o dois é a consagração da soma, pois , a idéia de ambos , eleva a um terceiro que só a boca entende , pois eis ali a passagem consolidada do líquido para o sólido , uma entrance na magia familiar.
Compete-se pelo melhor feijão , aquele que de fato é o falo , aquele que faz falar ," ah! que delícia" , a plenitude do preto em geral , aonde o branco numa inversão dos pré-conceitos faz a figuração coadjuvante , mas primordial , uma submissão consentida e humilde dos que servem para que outros brilhem.
O arroz é assim , embora tenha sua magia própria e um cardápio de requintes , aqui em nosso caso , é aquele que se empresta para ser consumado , o servo nem sempre citado , mas indispensável , a noiva deflorada a cada prato , onde os méritos são reconhecidos não pela sua oferta , mas pela performance do noivo.
Mas a combinação , que não é uma mistura , como parece a primeira vista , produz um encanto que passa a a ter com a fome uma relação diferente pois chega antes , ou seja, se constitue num tipo de figuração onde a fome é induzida apenas como acesso ao gozo.
Se come sem se comer , um ato sem determinação sólida , uma liçença virtual que o imaginário permite e concede a quem merece , e o feijão com arroz é assim , o um com outro, uma alteridade emancipada , um coito silencioso e com cheiro doméstico de família.
O feijão serve como marca emblemática de talento inesquecível , pois, saber-fazer feijão com tempêro e cheiroso , ah! leva o título campeão , e se inscreve no livro das façanhas culinárias.
Ah ! este é bom ! mas não é igual ao da minha mãe , ou da minha vó, ou da empregada, ou seja lá quem merecer o título , mas será esse feijão campeão que se estabelecerá como medida para os demais , num tipo diploma permanente e ao mesmo tempo de possíveis saudades acalentadas com recordações de cuidados e carinhos .
Lembro-me por exemplo , e esta parece ser uma questão para os fazedores de feijão , que o louro em folha de repente aparecia , como um tipo de intruso , bem vindo para uns, não para outros.Depois veio o em pó , o louro em pó, que alguns é uma heresia ,e também os têmperos industrializados que equalizaram a cozinha moderna com suas próprias fórmulas genéricas , já sem a alma dos segredos que sempre marcaram a arte culinária.
Essas mudanças aparentementes úteis , acompanham a transformação do tempo considerado hoje do ponto de vista prático , ou seja,não há tempo a perder , come-se o prático e dispensa-se as liturgias e ritualistícas das dedicações , uma perda que os restaurantes tentam aproveitar cobrando alto o preço do resgaste .
Os chamados acompanhamentos também entram numa certa relação de afinidades populares , e no nosso caso , por exemplo, o bife com batatas fritas , uma outra dobradinha muito apreciada que compõe um quarteto extremamente apreciado por muitos.
Feijão com arroz e bife com batatas fritas, minha nossa , aprende-se lá na infância e confirma-se o conceito de fixação , tão cara a Psicanálise , um prato duplamente cheio , tanto para os psi , como cheio para o desejo de que não acabe , que o prato esteja cheio mesmo.
O arremate final também é espetacular , pois guarda-se aquele pedaço final do bife com algumas batatas, caso de morte caso alguém chegue perto , é o fragmento final , guardado como símbolo do que falta para a completude , a satisfação do uno , a dimensão mítica de que não se precisa de mais nada , a experiência de satisfação revivida momentaneamente , o retorno do seio pleno.
Por outro lado não há comida que não passe pela energia dos que fazem , e mesmo em restaurantes observa-se o zelo de quem faz , pois parece que o alimento tem uma dimensão que só abre para além dele mesmo quando recebe algo do coração do feitor.
Está em jogo o alimentar, enquanto um gesto materno , um feminino cuidador , uma reverência solene que nos sugere em muitas ocasiões comer calados , como se a boca naquele momento fosse tomada de uma recepção única e concentrada , onde as palavras se recolhem para apreciar , um tipo de coro grego que sublinha o mais importante.
O jabá com girimun , também é uma outra dupla famosa , embora menos cotada, mas de grande prestígio , a carne seca com abóbora , uma combinação também de beleza , pois os secos se combinam com úmidos, assim como os queijos se combinam com goiabadas, numa conjugação que colorem à neutralidade da saliva e testificam que o desejo também é fruto do olhar.
Essas composições harmoniosas também nos levam aqueles lugares onde podemos sonhar com encaixes , suposições relacionais que quando se juntam tornam ainda melhor o depois, talvez mostrando que esse junto têm seus méritos aonde acrescentam e se destacam como unidade assimétrica.
E embora sejam básico e por muitas vezes sinônimo de povão , essas dobradinhas figuram o imaginário alimentício como despojamento , como simplicidade , como delícias, onde as classes sociais se encontram , talvez preconizando uma possibilidade dos cardápios, além do dinheiro, serem também uma mesa comum.
O feijão é o feijão , bem como o arroz , mas juntos destacam um momento que sózinhos não poderiam , e ao proporcionarem tamanho prazer se tornam inesquecíveis , um apêlo da boca quando se sente só.
Valeu.
Homenagem ao meu amigo Dr Wilson Soares Câmara, bom gourmet e apreciador de feijão com macarrão.
Pois então, eu havia escrito um longo comentário que ao ser postado, por um engano foi deletado. Então volto eu, ja não tão inspirada, mas ainda envolvida em recordações de cheiro e sabores de deliciosos pratos de feijão com arroz.
ResponderExcluirFeijão com arroz e mesmo uma excelente combinação, mas e tambem uma mistura. Uma mistura heterogênea, daquelas em que cada elemento mantem sua forma e propriedade. Mais envolvente o feijão colore o arroz, mas não lhe rouba as características singulares. Assim como devem ser os grandes encontros, onde cada um tem um sabor e forma característico e que, numa combinação perfeita misturam-se mas não se perdem, somam-se e produzem algo diferente do que ja e a maravilha de cada um em separado.
Bjs pr'ocê!!
Ana Lina disse:
ResponderExcluir1,2, feijão com arroz! Brincadeira da infância, delícia no prato, dupla que deu certo (que bom ter muitas outras!), simples combinação...como seu artigo, dessa vez, na simplicidade 'feijão com arroz', vem tb, generosamente, convidar mais leitores para uma 'mesa comum'!