29.12.11

LAMENTOS ESPIRITUAIS



Recentemente uma pessoa de minha família , após 2 anos de muito sofrimento em função de um câncer e outras infecções , e já traqueostomizada , falando com enorme dificuldade e bem baixinho, disse a sua filha, que estava morrendo.

Minha sobrinha me ligou assustada , pois era primeira vez, em todo este tempo, que sua mãe dizia tal coisa. Fomos vê-la já com certa impressão de despedida, e com certo sentimento opressivo no peito,e enquanto dirigia pensava em como era a vida , principalmente no que tange a este momento terminal , onde reis e rainhas , ricos e pobres, bacanas e plebeus , enfim, todos um dia hão de estar .

Minha cunhada sempre foi animada , bem disposta e certo dia descobriu um câncer de mama , que após tratado , foi dado como “zerado”, mas sobre controle periódico. Tempos depois , viria de forma breve e rápida a morte de meu irmão, mas ela resistia bravamente.

Quando chegamos , o cenário era o mesmo que antes tinha visto , ou seja, ela deitada com dois botijões de oxigênio ao lado , com a sonda enfiada goela abaixo , olhos abertos e um emudecimento imposto pelo quadro clínico, já que parecia não faltar desejo de falar.

Seu balbucear era intraduzível , ao que minha sobrinha , fiel intérprete, nos socorria da angústia de ouvir e não saber o que , uma estranha conversa sem reciprocidades.

Imaginei o quão desesperador seria falar e não ser ouvido ou entendido, sem ser mudo, já que a cadeia de pensamentos devia ser ampla , indagações onipresentes, e principalmente, a consciência de uma luta sem prognóstico , a não ser a oferecida pelo desejo de viver e melhorar.

O corpo já bastante desfigurado pelo sofrimento sequencial , sem tréguas, e principalmente , pela violência compreensível de se ver fora de casa , meses a fio, e que em retornos à mesma , na promessa de poder ficar durante bom tempo, era quebrada por alguma inter-corrência clínica, e logo, de volta ao hospital.

Sempre fico pensando que os nervos são a própria cabeça de cada um de nós , que nosso sistema nervoso é a continuidade das imagens que projetamos a cada momento , mas principalmente, as de forte impressão, ou seja, aquelas em nosso destino parece estar em jogo e que nos damos conta de que já não temos o controle do que pode nos acontecer.

Passar a noite em um hospital numa expectativa sabe-se do que, um lugar estranho que só nos faz lembrar de nosso quarto, de nossa cama , enfim, do conforto habitual do dormir , mas prioritariamente do conforto de nossa saúde, é a princípio assustador.

Há um certa fantasia de interligação do hospital com o cemitério, que obviamente carece de lógica, embora nem sempre. Abre-se uma etapa de dor e sofrimento que não oferece garantias de término , embora dependendo do diagnóstico nos sentimos jogados ou num alívio cheio de “ Graças a Deus” , ou num sentimento indescritível , ou um presságio, de algo profundo e sinistro que se aproxima para ficar.

 A família , o companheiro ou companheira também abrem uma peregrinação pela dor , um conjunto afetado pelo destino e que lutam para que a vida se preserve e que volte como era antes.

Mas em muitos casos não é assim . Nunca mais será como antes , um luto do que já não pode ser , um adeus dito à força, sem que a boca se abra. Uma névoa baixa, sem que a luz permita ver, uma comoção de fé , que de súbito descobrimos que não temos, um grande desamparo, onde a vida se esvai, para muito além dos limites de nosso corpo .

Minha cunhada me parecia nesse momento e nesse lugar , um lugar de quase nenhuma palavra , já que parecemos negar a morte até o fim, como se nos recusássemos a admiti-la e falar dela é quase autorizá-la , o que nos tornaria assassinos por falar do que não deve.

Me lembro quando perguntei a meu pai se ele tinha medo de morrer , causei um frenesi em família , porque isso não é pergunta que se faça ,ou seja, há o medo de que a pergunte mate.

Mas tomar consciência de que estamos no fim e que vamos partir e ter que deixar tudo e todos , completamente pelados , tal como chegamos , é duro demais.

Nós sem a vida e a vida sem nós , algo inconcebível , em planos comuns e ordinários como o que vivemos , sabemos que devemos desapegar e só de pensar nisso começamos a fazer questão de tudo, uma estranha fantasia que se nos agarrarmos direitinho a morte não nos verá.

Mas parece haver um momento que algo se afigura, e mesmo sem formato definido , parece ir chegando aos poucos e nos fazendo sentir longe , um longe só , um retorno ou um mergulho no que parece estar além , uma além que vai chegando e ficando pertinho , um longe –perto , ou um perto que vai nos levando pra longe.

Se largar, dizem os Mestres é o melhor , uma experiência de total entrega e única , como nunca fizemos em vida, um tipo de libertação consciente e decisiva . Mas quem de nós pensa em se largar numa hora dessa?

Quem pensa em deixar filhos , marido, mulher, carro ,casa , etc ? é uma falência múltipla do apêgo, um largar em grande escala , um desinvestimento súbito em tudo que passamos a vida investindo , um suicídio econômico , uma exigência apavorante ao nosso pobre ego sem alma.

Minha cunhada suspirou que estava morrendo não pelos remédios , segundo pergunta sugerida, mas disse em voz baixinha “ É pela minha vida mesmo que estou morrendo”.

Essa frase me fez viajar para profundezas , pois tenho relatos dos que antes de morrerem pareceram ver suas vidas de forma global , um tipo de síntese espiritual do que valeu ou não valeu a pena espiritualmente , um conceito do Cristianismo primitivo chamado”metanóia”, um certo repassar da vida a luz de si mesmo .

Sempre me causou impressão de que nessa hora , nesse repasse nos déssemos conta do que poderia ter sido diferente, da dor que deixamos nos outros, das mentiras com que nos descomprometemos , do amor que calamos e das críticas que exaltamos , talvez a consciência tardia de nossas deformações negadas e orgulhosamente blindadas.

Mas como tudo isso é profundo , como sabemos disso e nos esquecemos sempre , porque o orgulho é o nosso rei? Talvez a morte saiba disso e suas figurações seja de acordo com isso também , pois sua proximidade nos faz sentir o que vai ser arrancado e nos exacerba o medo do que de nós será descoberto , um sentido radical de transparência , onde todos nosso erros inconfessados nos esperasse logo na primeira esquina.

E o que teremos a nosso favor? Com o que nos defenderemos se sequer conhecemos quem nos acusa? O tribunal teológico parece ingênuo perante nossas obstinações explicativas , pois na medida em que nos vemos perante a outra face da vida, nossa cidadania se esvaísse, e já não conhecessemos à que legislação estamos sujeitos.

Nosso fim parece tão triste, que sequer conseguimos pensar na possibilidade de estarmos recomeçando ,sem nenhuma religiosidade no profundo e cultivando a superfície , temos a fantasia de sermos tragados por um buraco sem fim, uma eterna queda sem descanso , o pessimismo ,o pavor dos que vivem a Deus sem piedade, dos que fizeram do Espírito um descaso no seu viver cotidiano , o corpo como templo da eternidade.

Se há uma vida além do cemitério, como todas as culturas mais espiritualizadas afirmam, deveríamos estudá-la com afinco, e tirar proveito para nossa forma de viver, e não renegá-la ao espaço menor do imaginário intelectual. Não ficaremos mais vivos negando a morte , pelo contrário , somos tomados pelo medo de viver e de perder , o que nos leva a uma contabilidade mesquinha dos apêgos desnecessários , que a tesoura da morte não dispensará.

Minha cunhada nunca me pareceu tão profunda, e se mantém viva enquanto escrevo o artigo, mas após este encontro, me ficou como uma lição que agradeço e compartilho .   
Agradeço o retorno










5 comentários:

  1. Pois é, como falar da vida sem falar da morte, essa senhora a que tornamos cinzenta e que nos assombra porque a fazemos fantasmagórica. Talvez ela nos assuste tanto por sua característica inexorável que desvela a nossa impotência. Por que será que nesse momento fatal, e geralmente, só nesse, fazemos um retrospecto, revemos o viver e aí "caem as fichas" como nunca dantes acontecera? Por que essa reavaliação e clarividência apenas no momento em que já não se pode mais refazer a rota, reajustar a conduta, mudar o rumo? Será esse um recado da vida para que se morra sempre, ao nascer de cada dia, e vá se acostumando com essa prestação de contas para a qual caminhamos todos, sem apelação? Vamos então, aproveitando esse final de ciclo, começar um treinamento de despedida e nos deixar morrer para que no ano que se inicia (re)comecemos a Vida de modo a podermos receber a essa visita fatal com a alegria do menino que vai sair do colégio interno e voltar ao lar. Não custa sonhar. Feliz 2012!!

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  2. Difícil comentar este post. Lágrimas nos olhos. Bastante mobilizada com a leitura, mas ao mesmo tempo desejando ardentemente que possamos descontruir esta relação tão assustadora com a inerente passagem. Acreditando que morte e vida são dinâmicas e faces da mesma moeda, que possamos desde já, a cada dia, falar da morte, desmistificá-la, percebê-la como um exercício e porque não, treinar. Busco aqui serenidade para olhar este tema. Que difícil! Mas não tem jeito...então, firmeza e vamos em frente.
    Luciana

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  3. Cláudia de Paulo Pereira31 de dezembro de 2011 às 00:57

    Dom Alejandro, meu tio,
    É assim que o chamo carinhosamente. Por que? Não sei, talvez por perceber nele uma sabedoria aliada a certa autoridade espiritual. Daí o motivo de solicitar tua ajuda diante de uma súbita lucidez de minha mãe após dias de "desorientação". E neste Natal, minha mãe parece ter vindo buscar respostas a perguntas que não fez durante estes dois anos de "luta contra a morte", conseguindo dribrá-la,negá-la e ludibriando os prognósticos médicos. O que a sustenta nesta luta? por vezes me pergunto. Sua personalidade que nunca se acovardou diante das lutas? Os laços afetivos e um senso de responsabilidade comigo e minha filha? Após este período de "viagem" , mesmo sem se lembrar de nada do que falou ela, agora lúcida, começa a falar do sofrimento de ficar acamada, do desejo de completar mais um ano (os 70 anos)e de desejar que eu me cuide e tenha vida longa. Acho impossível não sentir medo daquilo que não conhecemos, não sentir angústia por não poder pensar para adiante como passamos a vida inteira fazendo e, o mais difícil, pensar em não podermos contar com o aconchego e o conforto de estar junto daqueles que amamos e aos quais podemos recorrer sempre que precisamos. Não sei se estas questões são as da minha mãe, mas são as minhas diante do processo dela. Só a nossa fé na vida eterna e no amor de Deus pode nos confortar.

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  4. É um tema que pouco queremos falar, como vc mesmo colocou, por isso tamanha dificuldade de comentar. Acredito que a busca por nossa evolução espiritual é a medida mais do que óbvia para saber lidar melhor com a morte. No entanto, a questão para mim ainda está no aqui e agora. O que tenho que fazer para ser uma pessoa melhor a cada dia comigo e com os outros, para viver melhor. Acredito que ter ciência do que somos e a que viemos é o início de um processo para compreendermos a morte.

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  5. “Não ficaremos mais vivos negando a morte”. Grande frase!!!!! Bom seria se médicos, familiares, amigos, vizinhos, conhecidos, enfim TODOS acreditassem nessa grande verdade. A morte existe, faz parte da vida, aliás, não existiria vida se a morte não existisse. Não dá pra negar, tem que acolher. Não dá pra negar, tem que abraçar. Não dá pra negar, tem que esgotar. Não dá pra negar, tem que falar, tem que chorar, tem que esvaziar. Apesar do medo. Apesar da dor. Apesar da insegurança. Apesar da falta de fé. Beijo. Obrigada pelo lindo artigo!

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