19.6.12

A primeira atenção ; o sentido do dever



“Isso não é exatamente certo ; retorquiu D.Juan .- A primeira atenção trabalha muito bem com o desconhecido. Ela o bloqueia; ela nega-o tão ferozmente que, no final, o desconhecido não existe para primeira atenção. D Juan in” O fogo interior” de Carlos Castanheda .

Desde um suposto início, o modo estabelecido pela consciência parece colocar a ênfase no como é viver nesse mundo, ou seja, estamos imantados a um tipo de ordenação que nos exige aprender e praticar , algo como , a vida é um exercício constante de funções e capacidades.

Embora, nosso determinismo biológico siga seu próprio roteiro, levando em conta também nossa  ambientação , somos uma criatura de múltiplas dimensões que se conjugam de uma forma espetacular, para tornar o viver possível.

E mesmo que não saibamos , o tempo todo, somos expressão de nossas capacidades de viver aqui , e digo aqui , como um modo de consciência polarizada, aquela consciência que mantém o foco , um modo perceptivo particularizado, onde as transações  se processam nos diferentes níveis .

Esses níveis, nos ajudam a reconhecer que, respondemos à vida no seu modo mais imediato, uma condição básica que desenvolvemos como garantia de continuidade , isto é, se não tivéssemos o sentido próximo dos alertas , estaríamos desguarnecidos , uma porta para que fossemos radicalmente atingidos.

Nossa primeira atenção, parece expressar nossa forma de preservação da vida , embora nos induzindo aí, a um modo de posicionamento, que ao ser regulado pelo imediato, exige uma prontidão da consciência que trabalha para tornar tudo conhecido , o mais rápido possível.

Parece haver nessa operação um sentido de preservação da vida em relação à morte, não só exatamente como nosso fim , mas também o desembocar no desconhecido de forma tão intensa , que embarreiramos o que nos tira do imediato e consideramos esse desconhecido como uma ameaça frontal e o repelimos .

Essa primeira atenção é o nosso dever , é o modo como devemos estar nesse primeiro nível , um ato contínuo e constante de processamento que nos absorve e que compactuamos , mesmo desconfiando que nem tudo cabe aí.

Se, por um lado, isso se faz imprescindível para viver , por outro nos asfixia, ao lhe tomarmos como o único nível possível para nossas capacidades, já que ao atentarmos para nossa forma de constituição , somos confrontados por tudo que vive além de nós ,e, no entanto, em nós.

É como se ao mesmo tempo coubéssemos e não coubéssemos , um estranho além ou aquém de si , que nos aponta claramente , que em todas as épocas fomos marcados por essas divisões, nomeadas de acordo com as nomenclaturas de época.

Mesmo a noção de inconsciente, que a Psicanálise brindou a modernidade , acabou por se tornar um lugar de exploração simbólica , uma palavra por dizer , muito mais do que um pertencimento dimensional , a angústia indecifrável do próprio mistério que nos sonda diariamente e que nos faz lembrar antipaticamente , que pra nós, a morte não é tão natural.

A angústia do desamparo que Freud apontava , parece o lugar do limiar , onde a primeira atenção começa a ficar descoberta , só que, mais por força de sua limitação de conter a vida no plano conhecido do que como ponte de idas e vindas .

O desconhecido é uma outra dimensão da consciência , que rasga seus limites com relação ao imediato –conhecido e empurra para outro nível , “é o campo  mais vasto que se pode imaginar, tão vasto que , na verdade, parece não ter limites...- Não gostaria de perder-me nela por nada deste mundo- diria Dom Juan à Castanheda.

No entanto , é nosso outro lado , o lado que ao associarmos com a morte, passamos a renegá-lo, já que a morte , tal como o ego , é auto-referente , e o medo é do que virá, e do que vamos perder. O sentido operacional dessa primeira atenção é manter essa divisão de lados de forma restrita , justo para que essa auto-referência  se mantenha intacta.

A questão é que para manter-se se faz necessário certa obstinação no conhecido , já que é o lugar onde as identificações funcionam como faróis na escuridão , enquanto no desconhecido as identificações não servem pra nada , por reduzirem-se a um mero fenômeno psicológico .

O desconhecido aqui, é o além que nos revela como pequenos e arrogantes , pois o tamanho de si é inútil ,e D Juan alerta para o perigo da vaidade , lugar fixo que ordena a percepção de forma habitual, e que rouba a integridade do guerreiro pela ilusão da importância pessoal.

Matar a importância é crucial nesse processo , pois para entrar no desconhecido é melhor fazê-lo estando com o mínimo possível , com uma disposição impecável da energia , o que no caso da importância pessoal é impossível , pois toda importância é pegajosa e aderente.

O anonimato requerido não é um desprezo ao mundo propriamente dito , mas uma condição do guerreiro para suas agilidades em outro mundo , invisível aos olhos comuns , mas mortal para os que se recusam a compreender e aceitar . Uma submissão consciente e atuante , uma liberação das energias contidas que produz comoções , e leva a consciência para longe , tão longe quanto cada um suporte se deixar.

A primeira atenção regula então os modos de percepção ordinária e reiterativa , que faz do mundo o mundo , uma hábito valente e compartilhado , que nos torna iguais por força de padrões comuns e nos promete uma segurança falsificada de uma grupalidade covarde.

Para avançar é preciso a solidão , lugar onde o silêncio nos ajuda a calar o excesso de sonoridades inócuas e oriundas de nossos inventários obsessivos , cheios de culpas e tormentos orgulhosos , ecos do fracasso narcísico, que tombou no limite de sua impotência de cobrir com verniz  os rituais que a angústia desenha perante o desconhecido.

O desconhecido visto assim, é um desprendimento , uma ruptura , que nos exige se despregar,  único modo de ter a energia disponível, uma energia não vinculada em modos restritos , ou um vínculo voltado para um Absoluto , cuja invisibilidade parece procurar em nós nosso lado não-material , o que de nós parece viver além , muito além, dos limites do corpo.

Mas também é verdade que nossa consciência , tal como nos determina nos mostra o tempo todo  os efeitos de nossas vinculações, pois ela mesma os toma como patamar de referência , ou seja, sem esses efeitos nos sentimos fantasmas incorpóreos, sem saber ao que se referir.

Para entrar no desconhecido então se faz necessário suportar as quebras que libertam a consciência mas trazem o medo ,e enfrentar o medo é condição básica para tal empreitada,a empreitada que se assemelha a morte , motivo pela qual nos recusamos a mexer com isso, daí que, tornar o desconhecido esquecido é o nosso grande truque de salvar nosso modo de consciência.

Mas se a consciência assim colocada rege a percepção , isso significa que , embora queiramos que tudo seja diferente para nos sentirmos vivos e diferenciados , temos um sinistra vocação para ficar no mesmo lugar , mesmo à custa de ser feliz.

Talvez ficar no lugar de sempre , nos preserve de nos sentirmos infelizes agudos , optamos por uma infelicidade mais crônica , na vã esperança que com o tempo, estejamos mais habituados a ela , já que nosso truque é transformar os hábitos em guardiões da segurança , uma forma de prender o mundo na primeira atenção .

Na medida em que a energia se vincula como hábito , toda percepção se regula como um padrão familiar, onde a linguagem trata de domesticá-la  na conta de uma nomeação conhecida , ou seja , o novo se torna velho ao receber nomes que impedem de ser visto como desconhecido ,mas como analogias do que já existe.

Evita-se assim rupturas de fato , que poderiam levar ao inusitado , ao que não se conforma, ao que não cabe , ao preço de ficarmos cheios de anseios e angústias pela compulsão de repetir sem conseguir diferenciar , como se aos poucos fossemos nos entregando a uma mesmice desgostosa que ao renegar o mistério perdeu seu encanto, e aí só lhe resta dar a morte a esperança de um término libertador.

Nesse caso a morte é sonhada como as terras distantes que pertencem ao outro lado, lado assustador e desejado ; para muitos fim de um fardo , para outros libertação da asfixia de um conhecido que se tornou monótono por falta do que mais oferecer.


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