“Isso não é exatamente certo ; retorquiu D.Juan .- A
primeira atenção trabalha muito bem com o desconhecido. Ela o bloqueia; ela
nega-o tão ferozmente que, no final, o desconhecido não existe para primeira
atenção. D Juan in” O fogo interior” de Carlos Castanheda .
Desde um suposto início, o modo estabelecido pela
consciência parece colocar a ênfase no como é viver nesse mundo, ou seja,
estamos imantados a um tipo de ordenação que nos exige aprender e praticar ,
algo como , a vida é um exercício constante de funções e capacidades.
Embora, nosso determinismo biológico siga seu próprio
roteiro, levando em conta também nossa ambientação , somos uma criatura de múltiplas
dimensões que se conjugam de uma forma espetacular, para tornar o viver
possível.
E mesmo que não saibamos , o tempo todo, somos expressão de
nossas capacidades de viver aqui , e digo aqui , como um modo de consciência
polarizada, aquela consciência que mantém o foco , um modo perceptivo
particularizado, onde as transações se
processam nos diferentes níveis .
Esses níveis, nos ajudam a reconhecer que, respondemos à
vida no seu modo mais imediato, uma condição básica que desenvolvemos como
garantia de continuidade , isto é, se não tivéssemos o sentido próximo dos
alertas , estaríamos desguarnecidos , uma porta para que fossemos radicalmente
atingidos.
Nossa primeira atenção, parece expressar nossa forma de
preservação da vida , embora nos induzindo aí, a um modo de posicionamento, que
ao ser regulado pelo imediato, exige uma prontidão da consciência que trabalha
para tornar tudo conhecido , o mais rápido possível.
Parece haver nessa operação um sentido de preservação da
vida em relação à morte, não só exatamente como nosso fim , mas também o
desembocar no desconhecido de forma tão intensa , que embarreiramos o que nos
tira do imediato e consideramos esse desconhecido como uma ameaça frontal e o
repelimos .
Essa primeira atenção é o nosso dever , é o modo como
devemos estar nesse primeiro nível , um ato contínuo e constante de
processamento que nos absorve e que compactuamos , mesmo desconfiando que nem
tudo cabe aí.
Se, por um lado, isso se faz imprescindível para viver , por
outro nos asfixia, ao lhe tomarmos como o único nível possível para nossas
capacidades, já que ao atentarmos para nossa forma de constituição , somos
confrontados por tudo que vive além de nós ,e, no entanto, em nós.
É como se ao mesmo tempo coubéssemos e não coubéssemos , um
estranho além ou aquém de si , que nos aponta claramente , que em todas as
épocas fomos marcados por essas divisões, nomeadas de acordo com as nomenclaturas
de época.
Mesmo a noção de inconsciente, que a Psicanálise brindou a
modernidade , acabou por se tornar um lugar de exploração simbólica , uma
palavra por dizer , muito mais do que um pertencimento dimensional , a angústia
indecifrável do próprio mistério que nos sonda diariamente e que nos faz
lembrar antipaticamente , que pra nós, a morte não é tão natural.
A angústia do desamparo que Freud apontava , parece o lugar
do limiar , onde a primeira atenção começa a ficar descoberta , só que, mais
por força de sua limitação de conter a vida no plano conhecido do que como
ponte de idas e vindas .
O desconhecido é uma outra dimensão da consciência , que
rasga seus limites com relação ao imediato –conhecido e empurra para outro
nível , “é o campo mais vasto que se
pode imaginar, tão vasto que , na verdade, parece não ter limites...- Não
gostaria de perder-me nela por nada deste mundo- diria Dom Juan à Castanheda.
No entanto , é nosso outro lado , o lado que ao associarmos
com a morte, passamos a renegá-lo, já que a morte , tal como o ego , é
auto-referente , e o medo é do que virá, e do que vamos perder. O sentido
operacional dessa primeira atenção é manter essa divisão de lados de forma
restrita , justo para que essa auto-referência
se mantenha intacta.
A questão é que para manter-se se faz necessário certa
obstinação no conhecido , já que é o lugar onde as identificações funcionam
como faróis na escuridão , enquanto no desconhecido as identificações não
servem pra nada , por reduzirem-se a um mero fenômeno psicológico .
O desconhecido aqui, é o além que nos revela como pequenos e
arrogantes , pois o tamanho de si é inútil ,e D Juan alerta para o perigo da
vaidade , lugar fixo que ordena a percepção de forma habitual, e que rouba a
integridade do guerreiro pela ilusão da importância pessoal.
Matar a importância é crucial nesse processo , pois para
entrar no desconhecido é melhor fazê-lo estando com o mínimo possível , com uma
disposição impecável da energia , o que no caso da importância pessoal é
impossível , pois toda importância é pegajosa e aderente.
O anonimato requerido não é um desprezo ao mundo
propriamente dito , mas uma condição do guerreiro para suas agilidades em outro
mundo , invisível aos olhos comuns , mas mortal para os que se recusam a
compreender e aceitar . Uma submissão consciente e atuante , uma liberação das
energias contidas que produz comoções , e leva a consciência para longe , tão
longe quanto cada um suporte se deixar.
A primeira atenção regula então os modos de percepção
ordinária e reiterativa , que faz do mundo o mundo , uma hábito valente e
compartilhado , que nos torna iguais por força de padrões comuns e nos promete
uma segurança falsificada de uma grupalidade covarde.
Para avançar é preciso a solidão , lugar onde o silêncio nos
ajuda a calar o excesso de sonoridades inócuas e oriundas de nossos inventários
obsessivos , cheios de culpas e tormentos orgulhosos , ecos do fracasso
narcísico, que tombou no limite de sua impotência de cobrir com verniz os rituais que a angústia desenha perante o
desconhecido.
O desconhecido visto assim, é um desprendimento , uma
ruptura , que nos exige se despregar,
único modo de ter a energia disponível, uma energia não vinculada em
modos restritos , ou um vínculo voltado para um Absoluto , cuja invisibilidade parece
procurar em nós nosso lado não-material , o que de nós parece viver além ,
muito além, dos limites do corpo.
Mas também é verdade que nossa consciência , tal como nos
determina nos mostra o tempo todo os
efeitos de nossas vinculações, pois ela mesma os toma como patamar de
referência , ou seja, sem esses efeitos nos sentimos fantasmas incorpóreos, sem
saber ao que se referir.
Para entrar no desconhecido então se faz necessário suportar
as quebras que libertam a consciência mas trazem o medo ,e enfrentar o medo é
condição básica para tal empreitada,a empreitada que se assemelha a morte ,
motivo pela qual nos recusamos a mexer com isso, daí que, tornar o desconhecido
esquecido é o nosso grande truque de salvar nosso modo de consciência.
Mas se a consciência assim colocada rege a percepção , isso
significa que , embora queiramos que tudo seja diferente para nos sentirmos
vivos e diferenciados , temos um sinistra vocação para ficar no mesmo lugar ,
mesmo à custa de ser feliz.
Talvez ficar no lugar de sempre , nos preserve de nos
sentirmos infelizes agudos , optamos por uma infelicidade mais crônica , na vã
esperança que com o tempo, estejamos mais habituados a ela , já que nosso
truque é transformar os hábitos em guardiões da segurança , uma forma de
prender o mundo na primeira atenção .
Na medida em que a energia se vincula como hábito , toda
percepção se regula como um padrão familiar, onde a linguagem trata de
domesticá-la na conta de uma nomeação
conhecida , ou seja , o novo se torna velho ao receber nomes que impedem de ser
visto como desconhecido ,mas como analogias do que já existe.
Evita-se assim rupturas de fato , que poderiam levar ao
inusitado , ao que não se conforma, ao que não cabe , ao preço de ficarmos cheios
de anseios e angústias pela compulsão de repetir sem conseguir diferenciar ,
como se aos poucos fossemos nos entregando a uma mesmice desgostosa que ao
renegar o mistério perdeu seu encanto, e aí só lhe resta dar a morte a
esperança de um término libertador.
Nesse caso a morte é sonhada como as terras distantes que
pertencem ao outro lado, lado assustador e desejado ; para muitos fim de um
fardo , para outros libertação da asfixia de um conhecido que se tornou
monótono por falta do que mais oferecer.
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