Num desses domingos límpidos de outuno , onde a vida parece que foi
polida e tudo ficou fácil de ver , pois a luminosidade foi regulada para não
ferir a sensibilidade , me preparei para um encontro com pessoas notáveis .
Aniversário de minha ex-mulher , com direito à velhos amigos , lá fui
eu.
De pronto, uma casa enorme , construída pós-separação que me faz pensar
que se sentia oprimida comigo , e no alto , com uma escadaria substituta da
igreja da Penha para os pagadores de promessas que resolveram fazer por menos.
Em lá chegando, todo passado logo se fez , mas com feições e afeições
renovadas , companheiros de geração , caminhantes com tempo de estrada , era
notório que os rostos são fiéis e permitem ver , que o tempo além de belo
professor , também é exigente com seus alunos .Envelhecemos todos , mesmo
guardando as proporções ,não há como negar.
Misturados então com as novas gerações , o contraste é pura denúncia .
Apolos que buscam sua vez , fazem relembrar o início , o como tudo começou .
Toda vez que penso nisso , vejo o quanto a morte é sábia . A morte consagra o
tempo do realizado e do que ficou por realizar , pois há um compasso apropriado
para essas realizações , pois depois, já não interessam tanto. Luta-se pelo que
se acha que vale a pena , mas descobre-se depois que nem tudo vale o esforço.
A arena já não comove tanto e os gladiadores se tornam entediantes ,
prima-se pelo bom-gosto .É o grande salto , o bom -gosto. E só os amigos que
entenderam isso permaneceram .
Um éter de qualidade paira no ar, uma tolerância dos que conheceram a
desilusão , dos que menos aprisionados pelas expectativas podem achar graça de
tudo , pois nada é tão grave quando os limites são mais naturais.
Depois de tantos encontros gostosos e cumprimentos encontro na fila do
crepe saboroso , feito com amor e carinho , meu amigo bonitão , Luiz Fernando,
a quem dedico estes escritos.
Como confissão particular , gosto de ir para esses encontros sempre com
humor apurado e com boa atenção , pois, em geral, tudo me diverte.
De repente, não me lembro exatamente porque, Luiz diz o seguinte , que
me impressionou:
" Tenho um amigo que diz, que existem 3 ítens para se conhecer uma
pessoa :
1- Sua relação com as crianças
2- Sua relação com os idosos
3- Sua relação com o dinheiro
Achei muito interessante , pois não havia pensado tão sistematicamente
nisso.
Redobrei minha atenção e Luiz então desdobra os argumentos " As
crianças são o início de tudo , o por onde tudo começa e já passamos.
Os idosos são dependentes e já nos deram, é hora de nós darmos a eles .
´É uma doação de si mas sem recíprocas e
sem palco, pois é uma doação tipo anônima , sem estardalhaços e discreta.
E quanto ao dinheiro , quando chega, muda as relações , aparece o que
antes não havia , a desconfiança.
Daí pra lá o tema me segurou e ficou me ladeando.
Resolvi então aceitar o desafio de desdobrá-lo , e agradeço a meu amigo
à inspiração.
O que são crianças ?
Se por um lado todos nos sentimos com algum direito a opinar por termos
passado por lá , criança é uma criatura a quem estamos devendo novas
elocubrações.
Momento fundamental e originário da construção psíquica , se constitui
num universo tão extraordinário, que a cada dia nos surpreendemos com novos
dados.
Em alguns trabalhos de pesquisas sobre a vida peri-natal descobre-se que
a interação criança-mãe é viva e de mensagens recíprocas no plano
mental-emocional.
Os estados da mãe são altamente influentes no feto , que por sua vez
configura muitos estímulos de forma precoce, como se antecipando ao porvir. Um
modo como a vida se defende , defendendo seus protagonistas .
Toda criança é uma criatura cósmica e representante de toda beleza
universal da vida , pois independente de nações, ou cidades , inspiram
admirações e respeitos pela origem da vida.
Momento único de visão giroscópica e de inocência desinteressada e por
isso tudo interessa, é a mente viva do início , que depois se enquadrará.
Convém lembrar que em geral é consagração do amor e representa o fluxo
da própria vida , em seu sentido mais misterioso , e a nossa fragilidade , onde
nossa dependência é mais exposta e ratifica o quanto precisamos uns dos outros.
Mas e os que espancam crianças?
É difícil não supor que o espancamento , que é a falta de limite do adulto
, não seja de certa forma o modo como aquele se revive , em velhos traumas de
violência , onde o limite é uma exigência feita mais ao que não é, do que ao que
é.
Em cada ato violento é como se a criança fosse agredida pelo que não é ,
pelo que não nasceu, às vezes o ódio ao que não tem.
Não é como o irmão, não é como deveria ser ,nasceu no momento errado,
trouxe novas incubências, enfim, é o próprio fracasso narcísico de quem espanca
, que trás consigo a mesma dor mascarada pelo orgulho e pelo ódio.
Óbvio , não se deve confundir violência com limites necessários ao bem
comum. Ensina-se a viver em sociedade , a respeitar o direito dos outros , a se reconhecer o
próprio valor , enfim uma construção complexa de amor e paciência , o que anda
cada vez mais raros.
Estamos gerando filhos da impaciência e da intransigência que virão pra
nossa conta , a um preço alto , pois serão mais rápidos e tornarão nossas
flexibilidades verdadeiras carroças do atraso.
Freud dizia que a criança é o pai do homem . Imaginem , como teremos
dificuldades para nos livrar dela com suas tiranias e exigências , base da vida
amorosa e social.
Estaremos fabricando homens e mulheres sado-masoquistas , com requintes
de vinganças que farão do amor um campo do medo e da impotência.
Tudo começa em casa.
E os idosos ?
Em seu livro sobre velhice Simone de Beauvoir diz que quando Buda saiu
do palácio de seu pai pela primeira vez numa carruagem , se deparou com uma
figura desdentada , curvado e numa bengala e ao perguntar o que era , recebeu
como resposta do seu cocheiro, que era um velho . Espantado o nobre princípe ,
que viria a se tornar uma das figuras mais importantes na história espiritual
da humanidade , diz " Que tristeza que os seres fracos e ignorantes ,
embriagados pelo orgulho próprio da juventude , não vejam a velhice! Voltemos
rápido para casa .De que servem os jogos e as alegrias , se sou a morada da
futura velhice?"
Na outra ponta da escala linear , lá estão eles, nossos queridos
velhinhos , pedindo respeito, amor e paciência também. Já nos deram e a hora é
de reconhecimento , o guerreiro depois da luta , as feridas , os desencantos ,
as perdas, as melancolias , as realizações também, a família, os filhos criados
, os netos e a morte na frente , na consciência do tempo que resta.
São nossos ascendentes , vieram primeiro , representam segundo Hellinger
a precedência , e desrespeitar isso , é uma agressão a vida .
Já demos vários golpes que mostram isso, sendo o primeiro o torná-los
inúteis , sem função social reconhecida , um tipo de anonimato forçado e
perigoso que muitas mortes precipitam.
Uma quase total falta de planejamento social, já indica que a velhice é
um tipo de demônio mal -visto e renegado. Tendo a queda da matéria como
visibilidade, e a morte como pano de fundo , tememos o futuro que se nos afigura
, ainda mais numa cultura cheia de mentira jovial , como se fossemos ficar
eternamente juvenis e não fossemos morrer.
Obviamente , não envelhecemos de pronto e sim um pouco a cada dia , um
estranho movimento oculto que só revela seus efeitos sem se deixar ver
diretamente , mas que por ser irreversível , tem a força de um destino comum.
A consideração então com esses companheiros do tempo , é sem dúvida , um
modo revelador, pois aí, talvez esteja o
que não aceitemos facilmente , ou recusa à algum tipo de identificação que
possa nos comprometer , à diferença de Buda.
A força do tempo com sua flecha que segue , é algo profundamente
instigador e temido , pois é verdade , que por não sabermos o que nos espera ,
projetamos todos os medos possíveis e imaginários , principalmente quando nos
ocorre ficarmos dependentes de alguém, por nos faltar a capacidade de cuidar de
si mesmo .
Pensar que vamos interferir na vida de alguém , por terem que nos cuidar,
é algo que apavora grande parte da população , principalmente porque é uma fase
da vida , em que as doenças nos espreitam e podem nos comprometer.
Há idéia de que possamos ser um peso pra quem seja , é dolorosa.
A morte começa a ser pensada, em muitos casos , como alternativa
salvadora.
Cheios de saudades do que se foi , e melancolias de futuros incertos , o
idoso segue com profundo sentimento de solidão , com insatisfações nem sempre
confessáveis , pois já se sente dando trabalho.
Quando tem independência financeira , o que ajuda muito , tem o dinheiro
como compensação e por muitas vezes é este seu trunfo .
Num mundo rápido de velocidades desconcertantes , ser velho é penoso.
Falta paciência e as irritabilidades são imediatas , pois velho é
símbolo de atraso .
Lembrando que temos que estar sempre adiantados , temos que chegar
nesses mal-ditos endereços que ninguém sabe aonde é. A modernidade líquida é
assim , esfumaçante , e impegável. O idoso precisa pegar, aproximar , conferir
,pois seu sistema sensorial ficou mais precário , e com isso desacelera , para
poder precisar. Mas , a grosso modo isso é uma heresia à pressa da vida moderna
, pois temos que chegar.
É incrível como essa fase parece trazer , uma necessidade de explorar o
mundo da sensibilidade , justo porque a diminuição do ritmo , trás o quanto se
andou sem ver ou sem sentir . Há um tipo de reparação de si , um aprofundamento
que o coração consagra , pois já não se tem que dizer como é , nem impor regras
, nem muito vigor do como deve ser.
É um convite à um tipo de observação , um modo de perceber sem rigor ,
um tipo de descontração, que ajuda a se reconectar com o início , num exercício
do como tudo poderia ter sido , caso fosse .
Tem-se aí a impressão que a vida tem mais opções viáveis do que se pôde
ver e oferecer , é o que os avós numa grande generosidade da vida , pode então
oferecer à seus netos queridos.
Muitos, procuram opções em grupos, que hoje ficaram consagrados , lugar
onde se dança, conversa ,e se encontra o espelho que busca solidariedades por
identificação.
Enfim, se carrega uma vida , uma história de si e de todos que nos
frequentaram , todos que vivem em nós , todos que morreram em nós.
Diria então que a velhice é um lugar , que talvez estabeleça solilóquios
onde o diálogo já não se faça tanto .
Aprender a arte profunda do Vivo , é a forma mais eficaz de passar por
esta etapa , pois o segredo da vida começa a ser visto como modéstia , um lugar
que permite se escutar os silêncios , as pausas , e as figurações que o
inusitado vai desenhando em formas variadas.
Uma estética marginal , mas de larga sabedoria .
O velho é um doar sem fama , sem holofotes , pois requerem doações numa
ordem diferente da que nos acostumamos , não há o que pedir de volta, pois já
recebemos ou não.
Talvez os que acham que não receberam , se sintam lesados de ter que
darem e em muitas relações este é um inferno particular , sem soluções rápidas,
de dívidas e culpas , que nem a morte libera.
E o dinheiro ?
O dinheiro é a paranóia , diz Félix guatarri , o psiquiatra italiano ,
amigo de Deleuze.
E é mesmo . Aonde entra o dinheiro as contabilidades se assanham e o
medo de ser lesado floresce . Como não temos um passado de transparências , e
sabemos das falcatruas do mundo em sua voracidade pelo dinheiro , é fácil
desconfiar.
O mundo é uma grande desconfiança , e o dinheiro só faz aumentá-la.
O dinheiro é a posse. Tudo de possessivo lá vem . Se perdermos a ordem
de grandeza que nos confere generosidade , dinheiro é tormento . E tome de
gente atormentada , cheias de medo de serem lesadas e passadas pra trás, gente
para quem o outro é suspeito de início e sem absolvição íntegra.
Todas as formas de associação no convívio , podem ter o destino que a
dimensão mal-dita do dinheiro induz. Seja o casal que pede ressarcimento ao
outro pelo dinheiro , seja a familia que após a morte de alguém importante ,
imediatamente vai aos finalmentes, e cada um quer o seu rápido , ou mesmo
tragédias que mediante dores intensas só têm como opção serem traduzidas em
dinheiro.
Diz um autor que não me lembro bem" o dinheiro conseguiu o que Deus
não conseguiu", apontando que a nível do dinheiro , até inimigos convergem
interesses e a humanidade encontra um elo em comum.
É no dinheiro que vivemos nossas mesquinharias inconfessadas e grandezas
pretendidas , nem sempre efetivas . Típico portador de uma lógica atrasada de
uma suposta sobrevivência , é um lugar farto de desculpas e justificativas ,
pois amparado por um sistema que consagra os vencedores e desmerece os menos
favorecidos , é o fetiche destacado da injustiça e da inveja .
Uma ordem social com estas premissas não deixa de ir ou de produzir ,mas
põe a descoberto setores tão importantes
da alma , que se por um lado ficamos mais ricos , por outro nossa miséria
espiritual é imensa.
Já tentamos tudo , para descobrir que se o dinheiro não for expressão
daquilo que a alma tem de humana , uma ordem humana sem restrições universais ,
utopia descartada que a tal globalização tenta resgatar por outro lugar
materialista, e com promessas de bens tecnológicos compartilhados, teremos dificuldades de construir um elo que
suporte , ou nos ajude a suportar o preço de um civilidade manca e excludente.
O dinheiro é um meio poderoso , mas um meio , não exatamente um fim , é
restritivo demais, traiçoeiro demais , para nos garantir o vôo delicado do amor
que a alma busca em sua realização divina .
Que seja então no possível , um meio que nos traduza em nossas
possessividades sintomáticas , que levou Freud a associá-lo com a retentividade
anal , onde o grande e o escatológico se encontram para se prenderem ou se
diferenciarem.
Tomado como grandeza é capaz de coisas incríveis e de gozo material
compartilhado , bem como, uma ordenação qualificada da vida em termos de
ofertas . Imagino um bom hospital , uma boa casa , boas estradas, belos
parques, uma civilidade ética e estética com o brilho que a matéria possibilita
quando bem polida.
Mas o dinheiro pede justiça o tempo todo , pois mostra o contraste que
nenhuma ordem econômica, por melhor que seja pode explicar.
O dinheiro é o modo como Deus deixa o mundo aos homens para se
exercitarem em suas capacidades , e na difícil tarefa de unir dinheiro e amor.
Luiz , um belo enólogo,ao citar seu outro amigo, a quem agradeço, me deu
este presente.
Gostaria então de erguer uma bela taça de vinho , um vinho cheio de
segredos da natureza ,e que sempre possibilitou aos homens celebrarem e fazerem
brindes ao que a vida tem refinamento : os amigos.
Pois acrescentaria modestamente a lista dos ítens, o modo como cada um
brinda e agradece, o que a vida nos oferece a cada dia .
Gratidão Alex! esse texto me abriu boas compreensões importantes sobre algumas relações que estou vivendo! Seguimos atentos. bjs Angela Morelli
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