Dª Clotilde morava na casa rente a minha . Casada com Seu Pedro
, formavam uma casal estranho para meus olhos infantis . Eram pais de Oséas , meu jovem amigo mulato , meio obeso e
retraído , de formas que quando retrocedo no tempo , vejo sua esquizoidia .
Esquizoidia , é uma termo da psicopatologia que significa
retração , ensimesmamento , conduta anti ou pouco social , aliás , um quadro
que hoje se expande , sem que ninguém diagnostique ou entenda bem suas razões (
Trataremos depois disso).
O fato das casas serem tão coladas, permitia um canal livre
em que as palavras iam e vinham , e ficávamos
sabendo de tudo que se passava lá , como uma peça de teatro em que
virávamos plateia da intimidade alheia , com cuidado para não sermos
descobertos.
Eu adorava aquilo , embora ficasse tenso quando havia brigas
feias , violentas , minha imaginação ia longe , já via assassinato , corpo no
chão , sempre fui fértil nos delírios ,e minha mãe me mandava ficar quieto ,
porque percebia algo interativo ou hiperativo em mim.
Era uma estranha sensação de participar de algo tão íntimo
sem ser convidado , confissões sem confessionário escolhido , uma confiança ou
descuido em paredes que não protegiam os palavrões horríveis , ou violências
que não havia em minha casa .
Mas o momento mais extraordinário e que aí não tinha jeito ,
e minha mãe logo vinha me vigiar , era quando passava um avião mais forte
roncando e Seu Pedro , que tinha sido taifeiro na guerra , entrava num tipo de
transe histérico e começava a gritar .
Minha nossa , aquilo rasgava o cotidiano de tal forma ,
trazendo o inusitado , o diabólico , que me deixava entre a vontade enorme de
rir e um certo medo , porque o homem falava cada coisa esquisita, meio falando
, meio urrando , talvez algo entre o pavor e a dor , mas num dialeto incompreensível .
Minha mãe me explicava que era efeito da guerra , o que me
comovia , mas a sonoridade , o modo como tudo se expressava tirava a
solidariedade a qualquer dor , pois o homem , eis aí um aspecto crucial da
história , simplesmente , virava um gay histérico .
Não me atrevia sei lá porque, a questionar se
necessariamente o trauma da guerra era responsável por tal transformação , era
pequeno e muita coisa a gente e vê e guarda , afinal o mundo dos adultos é
cheio de placas e sinalizações , ainda mais em se tratando de sexo .
Mas o fato era que o homem afinava a voz , se escondia onde
fosse, e desmunhecava meio destrambelhadamente , um ato de memória e
desrepressão , pois a dúvida se instalou em mim: O homem era assim com guerra
ou sem guerra ou a guerra que o fez assim ?
Desnecessário dizer, que cada vez que um avião roncava, eu
saia correndo para levar adiante minha pesquisa particular que fazia sem dizer
nada pra ninguém , pois o tema era proibido de ser tratado abertamente , me
parecia por consideração à família .
Pois se aquele homem fosse gay algo estaria errado ali ,
pois ele era o marido da Dª Clotilde e pai do meu amigo Oséas , e como meter
colher de pau em angú de caroço familiar ?
Um segredo guardado a sete chaves , desde que não viesse um
avião , senão , pronto , todas suspeitas se escancaravam , o homem era assim ou
a guerra o fez assim?
Minha mãe assanhada pra cacete era cúmplice do homem , que
era aposentado por reforma, adorava ir lá na casa do vizinho , pois no subúrbio
quem não trabalha fora procura companhia em quem não trabalha fora , semelhante
atraindo semelhante , a lei da
homeopatia , e trocavam estórias e como ele cozinhava muito bem , sua comida
baiana era deliciosa , e eu a acompanhava sempre , pois adorava cocadas e
amendoins feitos por ele .
Cada vez que eu ia lá ficava observando seu jeito e torcendo
( coisa horrível) pra passar um avião , queria presenciar ali , ao vivo , e
desfazer o emaranhado de perguntas que a situação me colocava . Mas confesso ,
sempre que eu ia , seus trejeitos me pareciam bem anterior a guerra , o que me
colocava de frente para o inviolável do segredo , o homem era gay?
Gay , é bom lembrar , é uma palavra estrangeira bem mais
amena do que dizia tempos atrás , onde as analogias eram muito mais zoológicas
, coisa que a luta contra o preconceito e do enfrentamento homofóbico vem
mudando conseguindo mudar às nomenclaturas .
Mas sendo o homem homossexual como constituiu família , casou , teve filho
etc?
Por vezes, gostaria de ter sido uma criança sem maiores
divagações , o problema é que o subúrbio é monótono , uma vida metonímica , que
anda a passos lentos , quase entediantes , me tomar por uma questão assim , me
ajudava a tornar a vida mais interessante , lembrando que o mundo também era
muito mais estanque.
Nada se falava a respeito , nem minha mãe que só mandava
recadinhos implícitos pra eu me calar, era a senha pra eu nada dizer ,
principalmente , porque jazia ali um segredo mortífero , capaz de ter um efeito
mais devastador do que um avião .
Ele sofre dos nervos dizia minha mãe , ficou assim por causa
da guerra , propondo um sequência apaziguadora na interpretação , coisa que
apesar de amar minha mãe , não conseguia ratificar em mim .
A dúvida piorou quando um dia ao ir sozinho em sua casa
pegar algo que minha mãe havia pedido , ele falou entre , entre , de forma
bastante carinhosa o que não era seu habitual e me mandou esperar . Daqui a
pouco me ofereceu generosamente um doce e pimba ... segurou no meu pequeno
pênis inocente , comprometido agora com uma constatação terrível , pois me
tornara a testemunha viva do que suspeitava.
Gritar me pareceu inconveniente , pois o medo me emudeceu ,e
ele pareceu se dar conta disso, pois me disse uns gracejos e me dispensou sem
maiores propostas amorosas , me achou pequeno provavelmente . E como contar à minha mãe?
A experiência me perturbou completamente , pois era justo o
pai do meu amigo , um entrecruzamento de papéis que não havia neurônio pra
tanta conexão , optei por me calar (já como preparativo para uma profissão que
trabalha com segredos o tempo todo) e embora não tenha feito disso um lacre ,
revelado posteriormente à minha mãe , via o constrangimento da situação a cada
vez que encontrava com meu amigo .
Me perguntava intimamente se ele sabia ? se sua mãe sabia ?
quem mais sabia ? mas nada , um concreto em cima do que talvez não valha a pena
vir a tona , mas que nem por isso deixava de cobrar seu preço , como viria
aprender posteriormente em terapia de família.
Um dia, DªClotilde teve que pular o muro de nossa casa , pois
a porta bateu com a chave dentro e ela não tinha como entrar . Acontece que ela
era baixinha , tipo mignon , mas bem gordinha e não havia escada para facilitar
sua empreitada , tiveram que levantá-la até a borda do muro .
Eu pequeno acompanhando tudo , interessado nessa empreitada
digna das grandes construtoras , e eis que de repente , quase caí duro , pois
ao levantarem a criatura vi com meus próprios olhos que ela estava sem calcinha
e percebi algo estranhamente cabeludo ,
que depois , chamaria de perereca .
Isso era demais pra mim , pois se um me obrigava a reflexões
de conexões sinistras , já me introduzindo na ordem dos arranjos da vida , a
outra me mostrava uma pintura surrealista , onde o surreal era o que naquele
momento, nada tinha a ver com o real que me ensinaram.
Ensinamento profundo
que guardaria atentamente , pois nada é como parece ou faz parecer , me
adiantando a lição de que entre o que é e o que parece, há distâncias que não
interessam à verdade , “A verdade sim, diria Lacan , mas não toda”.
A perereca da vizinha tá presa na gaiola , xô perereca , xô
perereca ... diz o refrão da música , aquela perereca ali , pelo contrário ,
estava solta no matagal , me deixando impressões que só posteriormente poderia
recuperar e que me fez agradecer a esta
família, que além de me proporcionar boa amizade , também me deixou marcas, que
me fariam pensar a sexualidade fora da moral burguesa tradicional e pôr Freud e Nelson Rodrigues na
mesma estante.
Maravilha de crônica, Alex.
ResponderExcluirDivertida e reveladora, em todos os sentidos...
Demais!
Abrs
Carlinho Nascimento