10.2.13

A DÚVIDA E A PERERECA DA VIZINHA



Dª Clotilde morava na casa rente a minha . Casada com Seu Pedro , formavam uma casal estranho para meus olhos infantis . Eram pais de Oséas  , meu jovem amigo mulato , meio obeso e retraído , de formas que quando retrocedo no tempo , vejo sua esquizoidia .

Esquizoidia , é uma termo da psicopatologia que significa retração , ensimesmamento , conduta anti ou pouco social , aliás , um quadro que hoje se expande , sem que ninguém diagnostique ou entenda bem suas razões ( Trataremos depois disso).

O fato das casas serem tão coladas, permitia um canal livre em que as palavras iam e vinham , e ficávamos  sabendo de tudo que se passava lá , como uma peça de teatro em que virávamos plateia da intimidade alheia , com cuidado para não sermos descobertos.

Eu adorava aquilo , embora ficasse tenso quando havia brigas feias , violentas , minha imaginação ia longe , já via assassinato , corpo no chão , sempre fui fértil nos delírios ,e minha mãe me mandava ficar quieto , porque percebia algo interativo ou hiperativo em mim.

Era uma estranha sensação de participar de algo tão íntimo sem ser convidado , confissões sem confessionário escolhido , uma confiança ou descuido em paredes que não protegiam os palavrões horríveis , ou violências que não havia em minha casa .

Mas o momento mais extraordinário e que aí não tinha jeito , e minha mãe logo vinha me vigiar , era quando passava um avião mais forte roncando e Seu Pedro , que tinha sido taifeiro na guerra , entrava num tipo de transe histérico e começava a gritar .

Minha nossa , aquilo rasgava o cotidiano de tal forma , trazendo o inusitado , o diabólico , que me deixava entre a vontade enorme de rir e um certo medo , porque o homem falava cada coisa esquisita,  meio falando  , meio urrando , talvez algo entre o pavor  e a dor , mas num dialeto incompreensível .

Minha mãe me explicava que era efeito da guerra , o que me comovia , mas a sonoridade , o modo como tudo se expressava tirava a solidariedade a qualquer dor , pois o homem , eis aí um aspecto crucial da história , simplesmente , virava um gay histérico .

Não me atrevia sei lá porque, a questionar se necessariamente o trauma da guerra era responsável por tal transformação , era pequeno e muita coisa a gente e vê e guarda , afinal o mundo dos adultos é cheio de placas e sinalizações , ainda mais em se tratando de sexo .

Mas o fato era que o homem afinava a voz , se escondia onde fosse, e desmunhecava meio destrambelhadamente , um ato de memória e desrepressão , pois a dúvida se instalou em mim: O homem era assim com guerra ou sem guerra ou a guerra que o fez assim ?

Desnecessário dizer, que cada vez que um avião roncava, eu saia correndo para levar adiante minha pesquisa particular que fazia sem dizer nada pra ninguém , pois o tema era proibido de ser tratado abertamente , me parecia por consideração à família .

Pois se aquele homem fosse gay algo estaria errado ali , pois ele era o marido da Dª Clotilde e pai do meu amigo Oséas , e como meter colher de pau em angú de caroço familiar ?

Um segredo guardado a sete chaves , desde que não viesse um avião , senão , pronto , todas suspeitas se escancaravam , o homem era assim ou a guerra o fez assim?

Minha mãe assanhada pra cacete era cúmplice do homem , que era aposentado por reforma, adorava ir lá na casa do vizinho , pois no subúrbio quem não trabalha fora procura companhia em quem não trabalha fora , semelhante atraindo semelhante ,  a lei da homeopatia , e trocavam estórias e como ele cozinhava muito bem , sua comida baiana era deliciosa , e eu a acompanhava sempre , pois adorava cocadas e amendoins feitos por ele .

Cada vez que eu ia lá ficava observando seu jeito e torcendo ( coisa horrível) pra passar um avião , queria presenciar ali , ao vivo , e desfazer o emaranhado de perguntas que a situação me colocava . Mas confesso , sempre que eu ia , seus trejeitos me pareciam bem anterior a guerra , o que me colocava de frente para o inviolável do segredo , o homem era gay?

Gay , é bom lembrar , é uma palavra estrangeira bem mais amena do que dizia tempos atrás , onde as analogias eram muito mais zoológicas , coisa que a luta contra o preconceito e do enfrentamento homofóbico vem mudando conseguindo mudar às nomenclaturas .

Mas sendo o homem homossexual  como constituiu família , casou , teve filho etc?

Por vezes, gostaria de ter sido uma criança sem maiores divagações , o problema é que o subúrbio é monótono , uma vida metonímica , que anda a passos lentos , quase entediantes , me tomar por uma questão assim , me ajudava a tornar a vida mais interessante , lembrando que o mundo também era muito mais estanque.

Nada se falava a respeito , nem minha mãe que só mandava recadinhos implícitos pra eu me calar, era a senha pra eu nada dizer , principalmente , porque jazia ali um segredo mortífero , capaz de ter um efeito mais devastador do que um avião .

Ele sofre dos nervos dizia minha mãe , ficou assim por causa da guerra , propondo um sequência apaziguadora na interpretação , coisa que apesar de amar minha mãe , não conseguia ratificar em mim .

A dúvida piorou quando um dia ao ir sozinho em sua casa pegar algo que minha mãe havia pedido , ele falou entre , entre , de forma bastante carinhosa o que não era seu habitual e me mandou esperar . Daqui a pouco me ofereceu generosamente um doce e pimba ... segurou no meu pequeno pênis inocente , comprometido agora com uma constatação terrível , pois me tornara a testemunha viva do que suspeitava.

Gritar me pareceu inconveniente , pois o medo me emudeceu ,e ele pareceu se dar conta disso, pois me disse uns gracejos e me dispensou sem maiores propostas amorosas , me achou pequeno provavelmente .  E como contar à minha mãe?

A experiência me perturbou completamente , pois era justo o pai do meu amigo , um entrecruzamento de papéis que não havia neurônio pra tanta conexão , optei por me calar (já como preparativo para uma profissão que trabalha com segredos o tempo todo) e embora não tenha feito disso um lacre , revelado posteriormente à minha mãe , via o constrangimento da situação a cada vez que encontrava com meu amigo .

Me perguntava intimamente se ele sabia ? se sua mãe sabia ? quem mais sabia ? mas nada , um concreto em cima do que talvez não valha a pena vir a tona , mas que nem por isso deixava de cobrar seu preço , como viria aprender posteriormente em terapia de família.

Um dia, DªClotilde teve que pular o muro de nossa casa , pois a porta bateu com a chave dentro e ela não tinha como entrar . Acontece que ela era baixinha , tipo mignon , mas bem gordinha e não havia escada para facilitar sua empreitada , tiveram que levantá-la até a borda do muro .

Eu pequeno acompanhando tudo , interessado nessa empreitada digna das grandes construtoras , e eis que de repente , quase caí duro , pois ao levantarem a criatura vi com meus próprios olhos que ela estava sem calcinha e percebi  algo estranhamente cabeludo , que depois , chamaria de perereca .

Isso era demais pra mim , pois se um me obrigava a reflexões de conexões sinistras , já me introduzindo na ordem dos arranjos da vida , a outra me mostrava uma pintura surrealista , onde o surreal era o que naquele momento, nada tinha a ver com o real que me ensinaram.

Ensinamento profundo  que guardaria atentamente , pois nada é como parece ou faz parecer , me adiantando a lição de que entre o que é e o que parece, há distâncias que não interessam à verdade , “A verdade sim, diria Lacan , mas não toda”.

A perereca da vizinha tá presa na gaiola , xô perereca , xô perereca ... diz o refrão da música , aquela perereca ali , pelo contrário , estava solta no matagal , me deixando impressões que só posteriormente poderia recuperar e que me fez  agradecer a esta família, que além de me proporcionar boa amizade , também me deixou marcas, que me fariam pensar a sexualidade fora da moral burguesa  tradicional e pôr Freud e Nelson Rodrigues na mesma estante.

 

 

 

 

 

Um comentário:

  1. Maravilha de crônica, Alex.
    Divertida e reveladora, em todos os sentidos...
    Demais!
    Abrs
    Carlinho Nascimento

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Há ou não inveja do pênis?