TAPEAÇÕES
Talvez o que chamamos de “realidade”, tentando conferir a
ela um certo mote de determinismo , onde o chavão “ a realidade é assim mesmo “,
parece nos impor alguma resignação nos convidando a se conformar , contenha
mais mistério e mais tapeação do que
sonha nossa vã filosofia.
Se olharmos atentamente pra nossa vida, o que vemos é um
consumo enorme de energia com tarefas , deveres , obrigações e promessas de
dias melhores , que impressionam pelo modo como são adiados . É como se vivêssemos
com gosto de lesados , assistindo uma série de falcatruas, onde os
favorecimentos dispensam qualquer senso de justiça social e considerações sobre
o prejuízo aos outros .
Pouco interessa estes outros se estamos assegurados por
nossos inter-pares, que não só participam de modo cúmplice , mas que também
levam o seu , numa rede de conluios e trapaças , cuja oneração , ou seja , a
conta , tem que ser paga por todos ,aqueles que sequer comeram do bolo.
O custo é incalculável e repercute em todas esferas da vida
, principalmente , onde os investimentos são necessários para melhorar a vida
coletiva em seus aspectos variados , como saúde , alimentação , transporte ,
lazer etc .
O cenário fica ainda mais agravado, quando nos damos conta,
que somente alguns poucos usufruem de tal regalias e que criam mecanismos de
reprodução e de defesas elaboradas , para não perderem o gozo dessa usurpação ,
bem como , colocam a si mesmos como representantes legítimos de tal aberração .
Obviamente ,e sabemos bem disso , nada disso é novo ,e
senhores e escravos, opressores e oprimidos , patrões e empregados , governos e
sociedades , sempre dialetizaram em torno de seus interesses políticos e
materiais , e nesse sentido a história parece se repetir .
No entanto , na medida em que evoluímos , seja pela retórica
da evolução biológica ou espiritual , onde a evolução da consciência parece ser
a chave do processo , vamos percebendo também que o mundo encarna às mazelas
que nos pertencem .
Correções que estabeleçam um correto que não seja morto ou
corrompido , dependem de uma certa suscetibilidade , que pode vir pelo viés
político, religioso , ou espontaneamente compassivo , onde o outro não pode ser
uma decoração sem voz , sem reconhecimento , sem um mínimo de sujeito que diga
, que aja , que faça jus ao que o humano tenha de dignidade.
O tal "olho grande" que atribuímos às crendices e superstições
, pelo contrário , parece um fato de grande relevância científica , pois é
grande por querer conter mais e mais , sustentando a lógica perversa , de que
uma vez podendo ter mais , porque não?
Justifica-se então que os outros são meramente invejosos
porque não tiveram oportunidade , e sendo assim , pega-se o quanto mais melhor
, pois qualquer um faria o mesmo nesse lugar , lógica fácil de entender, porque
determinados lugares uma vez alcançados , não se quer sair mais deles .
Premissa do próprio atraso e do sub-desenvolvimento
interesseiro , ou seja ,a ignorância como instrumento de dominação , renega-se
a idéia de uma teia própria da vida, onde todos tem o seu lugar e sua
importância em sua cadeia de produção , sendo que , acrescentando à Capra,
que nossa realização como espécie ,
depende de desenvolvermos a capacidade de amar .
É o amor que nos dá a chance de nos reconhecermos igualmente
perante nossas diferenças , e se hoje , a neurociência descobre que o Bem é
também mecanismo de produção de serotoninas e endorfinas , é ao humanizar o
outro em seu valor , que minha humanidade se realiza .
Depreciar o outro, condená-lo ao prejuízo, tornar a vida
mais difícil pra todos em nome de ganâncias , fere é a ordem que jogamos fora ,
para nos livrar dela e ficarmos mais a vontade com nossas trapaças , fazendo o
mundo depender somente de nossas inteligências e sofisticações culturais , isto
é, a ordem cósmica .
Reconhecer que pertencemos a uma Ordem maior pode nos
inferiorizar , nos fazer reviver
submissões opressivas de religiões autoritárias , e aguçar nossos traumas de
liberdade , mas tudo nos mostra que não há outro caminho , já que distorções
geram desequilíbrios caros e sofrimentos profundos demais .
Muita riqueza pra poucos faz sofrer a muitos , muita
ladroagem tira da vida à confiança , muitos assassinatos nos faz ter medo de
viver , à violência destrói nosso prazer de estar aqui e cria fobias estranhas
, o cinismo nos torna cínicos e prisioneiros de segundas intenções .
Adoecemos a olhos vistos com desequilíbrios mais variados no
campo mental , e se Freud se surpreendeu com a força da sexualidade , hoje sua
banalização gera esquizoidias nos afetos , no sentido da entrega , pois porque
se comprometer se se pode ter mais?
E mais ,e cada vez mais , uma compulsão perigosa que leva
consigo qualquer fundamento , onde tudo vale , já que é uma questão de
livre-arbítrio , e onde a ordem social perdeu seu fio condutor de dizer o que é bom ou
ruim , ou seja , somos livres como queríamos , e perdidos como nunca.
Nossas transgressões não geram de fato uma outra ordem ,
onde pudéssemos relaxar e compartilhar os ganhos , pelo contrário , mal
chegamos e logo saímos , já que nada serve muito , e por uma estranha compulsão
temos que seguir , embora , por favor , não perguntem pra onde .
Canalhices ferem o tecido social e forjam imagens perigosas
da vida como um campo de ninguém , nos ensinando que se formos canalhas estamos
matriculados , já que o sintoma da tapeação se tornou uma palavra de ordem da
sobrevivência .
Mas por outro lado , é incrível, que o que condenamos ,
também descobrimos em nós , e também somos objetos e sujeitos dessa perversão ,
não como agentes de coisas extremas mas talvez de pequenas lesões que também
nos interrogam em nossa coerência e o quanto fazemos da vida uma questão de
oportunidade .
Creonte , o grande Rei de Tebas , dizia que só se conhece um
homem depois que ele passa pelo poder , e sem dúvida , prova difícil do que
temos de incorruptível , como se fossemos afrontados com a tentação de “ que a ocasião faz o ladrão “.
É por vezes tão ruim ver governantes esbanjar cinismo em
proveito próprio , como é difícil ver o guardador de carro cheio de espertezas e intimidações ,
como é mais difícil ver um amigo lesando conscientemente alguém .
Mas o mais doloroso é ver que somos vacilantes, e que nossas
convicções também tem sua parte frouxa , que também nutrimos em muitas
ocasiões, a mesma retórica que tanto nos parece execrável nos outros .
A cura passa por aí , curar em si o que maldiz o outro ,
único meio de se libertar desse visgo, que com certeza , ainda teremos que
trabalhar e sofrer muito para transformá-lo numa compreensão cósmica , aquela
que nos ensina e nos lembra , que apesar de todos os tesouros, um dia que não
se sabe a hora , vamos morrer .
Será que haverá outro tipo de justiça a nos esperar ?
Belo texto. A mudança que todos queremos de um mundo melhor, mas que pouco nso empenhamos para alcançá-la, acredito que passa pela prática do amor. Como profissional da área da violência percebo que mais do que investimento em segurança, informação, precisamos exercitar o respeito ao próximo em suas inúmeras diferenças. Tendemos sempre a julgar e a achar os culpados sem preceber que a responsabilidade pelo mundo que vivemos está em cada um, nos pequenos gestos do dia-a-dia.
ResponderExcluir