21.8.11

A BURRICE RELACIONAL II


A figuração do burro enquanto algo retrógrado , algo que empaca , como caracterização da falta de inteligência , é um tipo de licença que não faz jus ao animal, que diga-se , é inteligente .A questão é que mediante algum perigo ou reminicência o danado empaca que não anda de jeito nenhum.

Para o observador não há perigo algum , para o burro sim , que por sua vez não cede de maneira alguma , em geral , causando irritações em seus donos, que sabem que bater não adianta . Com isso qualquer ato de menor prestígio ou considerado de pequeno alcance é considerado " burro ", o antônimo de inteligência , do brilho , do fulgor ,da assimilação rápida, enfim , um mal-dizer que se tornou uma arma de depreciação .

Mas em nosso caso consideraremos um detalhe interessante , nessa situação do burro, ou seja , é que o burro não passa pelo mesmo lugar que algo aconteceu e o impressionou , como se revivesse o que passou de forma tão atual que é como se estivesse acontecendo agora. É difícil convencê-lo que a situação é outra e já passou , pra ele por um estranho condicionamento, o resultado será sempre o mesmo.

Nada mudou , pois prisioneiro do tempo, não enxerga o que já não é o mesmo ,seu sentido lhe trás uma ameaça , cujo perigo está mais dentro do que fora , uma cisma que acabou lhe consagrando , como símbolo da burrrice .

O que seria então uma burrice relacional?

Começaremos então pela palavra consciência , ou seja , sua dupla vertente :

A primeira pela ciência ,a expressão do desejo de conhecer , a construção do saber , uma modalidade de cognição fundamental que ilumina a vida , corta a ignorância e permite aquisições importantes na transformação da vida .

A outra é o com : o estar-com, o exercício do convívio como produção de consciência, o outro como amor e como ódio , este esbarrão constante que me serve como aconchego e ao mesmo tempo como repulsa , essa intimidade e invasão perene , o eterno desafio da habilidade para se com-viver.

Daí a ver que o convívio é aonde a chama da consciência acende ou apaga não é difícil , difícil é aceitar que na raiz dessa convivência a vida aprimora seus modos , uma ascese do grotesco ao sublime , na qual todos nós, querendo ou não estamos submetidos .

Relação é uma denúncia constante do que é bruto e do que se aprimora , do que se pede e do que se oferece , um eterno jogo de reconhecimento , onde cada ato se inscreve numa significação amorosa para ser celebrado ou frustrado , o que nos cura ou nos fere , uma estranha sensibilidade que parece nos tornar débeis e dependentes.

Ora, mas a virtude do amor é o poder de mostrar aonde somos frágeis e sensíveis , uma senha da espécie que poderia servir como alerta, pois a dor do reconhecimento é comum, e que partindo daí , deveríamos ter em conta que ao mesmo tempo que sofremos , fazemos sofrer .

Nesse ponto algo se impõe , a saber :

Que somos criaturas do verbo e que o verbo é o início , e que o início era o verbo .

Isso nos ensina que o verbo é o que dá partida , ou seja, tanto inicia como parte .

Ao dar a partida chama pra junto ou afasta , exclue , um tipo fica pra lá, que tem o poder mortal de ofender e abrir feridas.

O tempo todo informamos uns aos outros que somos sensíveis ao trato e que no trato, muitos protocolos do convívio existem , já que se referem aos modos primários , aquela película de sensibilidade que subjaz ao ato humano e lhe confere o que o poder de afetar.

Como desde sempre nascemos no campo do Outro , inscritos no desejo que nos trouxe ou que nos recusou , não temos como forçar emancipações ou independências que busquem renegar essa ordem humana , ao risco de graves distúrbios esquizóides e psicopatológicos.

Dessa forma então , se tudo começa no verbo e se somos sujeitos-objetos do trato, então porque não prestamos uma atenção mais específica a esses dois ítens tão fundamentais?

Por exemplo , a palavra uma vez dita , não tem jeito , já é , como se diz.

Logo , seria interessante :

Observar o momento de dizê-la , e o modo como é pronunciada , já que o outro é sensível às intenções nem sempre explícitas que contém.

A palavra será tão mais íntegra e respeitável , quanto menos acusativa seja , já que acusações de certa forma , sempre trazem algum nível projetivo não reconhecido em quem fala.

Pra isso é necessário que possamos ir além dos 5 minutos iniciais , como dito no artigo anterior, o nível reflexo onde as ofensas encontram as dores primárias ainda em estado bruto, pois blindadas , em geral, pelo orgulho , não permitem fácil acesso à consciência a não ser pelas projeções , onde o que não reconheço em mim aparece como acusação ao outro .

A ponderação , ajuda o compasso do tempo e ao modo de falar , embora , seja importante também identificar o quanto as intenções falsificam as justificativas , já que o que se diz num nível , não se justifica no outro .É como se a palavra apontasse pra um lugar e a expressão facial ou gestual não corroborasse o endereço .

Esse fenômeno dissociativo que a teoria da comunicação trouxe para o estudo das familias e que tem sido de grande valia no estudo clínico em geral , pois , é a negação do que nos escapa, e que retorna como tensão aumentada , impossiv el de ser contida numa conversa , por exemplo .

É mais fácil brigar do que conversar , diz um autor . Casais se separam melhor quando estão bem , neuroses conjugais são vícios reiterativos , o que ameaça e não se cumpre , diz outro estudioso.

Mas tudo é relativo a capacidade de conter sem agir , um tipo de exercício quase yogue , um suportar à energia que ofende sem ofender , uma troca desigual que só o amor referenda , uma alternativa , onde a opção é buscar abrangência onde tudo se estreitou , um oferecer algo maior a si mesmo , evitando-se assim o sinistro emocional que se segue de imediato à ofensa.

Quando uma pessoa tem lesões primárias graves , talvez isso seja ainda mais difícil , mas parece ser esse o caminho de nossa cura , senão , nossa alternativa é repetir , e repetir sem poder elaborar , ou seja , sofremos de forma incompreendida sem aprender nada , razão obscura de nossa revolta e de nosso confinamento incandescente no fogo do ódio que nos subjuga.

Não é atoa que Lacan , já se referia ao amor e ao ódio , como amódio , apontando o quanto sofremos de ambos , quase sempre no mesmo lugar .

Talvez devessemos aprender o momento de se calar e esperar , o momento mais oportuno de falar , buscando com isso algo que ultrapasse , que não fique no jogo pequeno de quem tem razão , algo que se imponha por sua maioridade , por sua clareza , por sua maior dignidade .

Me parece um exercício tão profundo quanto raso , mas um exercício onipresente , uma busca de um ponto acima , uma elegância um pouco acima da grosseria , uma inteligência um pouco além de uma burrice que estanca em si mesma , um amor a mais do que a espada , uma grandeza mais atraente do que minímos auto-referentes, que obliteram o outro por nos imputar uma dor especular de grande custo narcísico , principalmente ali onde Narciso empacou no fascínio de sua imagem estanque.









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