21.8.11
A BURRICE RELACIONAL I
"A burrice é uma cicatriz" (Adorno-Horkheimer)
" O ato repressor cria uma espécie de cicatriz - burrice. Quem é repreendido e reprimido , repete o último gesto que assistiu antes da repressão . Toda vez que é posto para pensar , ou que é acionado de alguma maneira para agir , ele repete o gesto de violência que o emburreceu. Ele empaca na gesticulação estereotipada. Assim, o burro , nesse caso, não é violento por ser ignorante,mas é violento por conter a cicatriz da burrice." (Guiraldelli Jr in ""A dialética do Iluminismo")
Sem contraposição a Goleman " A inteligência emocional " , nem a Gardner com sua teoria das "Inteligências múltiplas", gostaria de recortar um tema do cotidiano , bem onipresente e campo de muitos desentendimentos e sofrimentos diversos, ou seja , a burrice relacional.
Se a epígrafe é correta , logo o burro além de " empacar ", sofre de recorrência , pois volta ao mesmo lugar , toda vez que desafiado a pensar ou a agir , no sentido de senhor de si , retoma ao lugar de escravo , ou seja , o que não esquece e não perdoa , pois tem uma dívida impagável que o atormenta e por isso , não pode ser livre , a não ser para lembrar .
Mas lembrar o que ?
O gesto que o emburreceu . Como?
Há aí, um entrelaçar entre o que emburrece e o que é emburrecido , pois se não se pode pensar, menos ainda falar , pois só se fala para viver e ser feliz, o resto são mímicas , um jogo especular de mágoas e lesões de reconhecimento , em que a burrice é aquela de manter a única opção possível , ou seja , não ter opções.
O burro empaca em sua falta de opções e em seu estreitamento negativo , pois tem razão que ninguém vê , só ele . Essa é sua arma mortal , fazer desconhecer suas razões ou dogmatizá-las de tal forma , que ao mesmo tempo que é um incompreendido, é também autor de um texto que escapa às palavras , e consequentemente à fala .
Quem fala se desdiz , quem não fala tem sempre razão intocável , lugar que ninguém sabe aonde é , logo , não se chega lá . A burrice, nesse caso, não pode prescindir de seu esconderijo, lugar de suas inúmeras razões inomináveis , arma poderosa , pois se mata sem dizer o porque, jogo perverso que faz do outro, alguém que não entende ... o que jamais foi dito.
Não se questiona aí o absurdo do paradoxo , pois para o burro ele não existe , blindagem demais para reconhecer o valor do limite.
Não se escolhe as palavras, nem o momento , nem a ternura que as tornaria melhor recebidas , pois no fundo tem medo de ser compreendido e ter que vir a luz do dia mostrar seu rosto, que não vê faz muito.
Ser burro é também ser bruto , pois a brutalidade é a intimidação que tenta negar o que precisa ser dito , mata-se, mas não se confessa.
Pois senão vejamos :
O que se quer?
Amor e prestígio , duas demandas poderosas de qualquer ego humano .
Como se faz?
Escolhe-se alguém, ou se é escolhido por alguém ,que deixará de ser alguém e se tornará um foco , um foco constante de apêlos variados , pedidos de amor e sexo , de importância , de lugar exclusivo , de companhia que fará um recorte no mundo, com ela(e), o mundo é outro , justo porque é um outro .
A partir daí uma inter-penetração irá tecer o convívio , um estranha vivência de se deixar ir e de ficar , um pêndulo, que nesse lá e cá , expressa o desafio do ganho que nos obriga a se arriscar e o medo danado de perder e sofrer , a doce vertigem de que não há garantias .
Mas é verdade também, que a partir daí , este outro que passa a nos fazer parte , também desafia nossas habilidades de cativar , de atrair , enfim, de se valer a pena , eis um desafio que uma vez iniciado segue até o fim , pois no mundo dos investimentos diz um autor " o inconsciente é capitalista ", como a ressaltar que por mais que não queiramos " não há lugar assegurado" .
É como assumissemos a tarefa de nos fazer interessantes , uma qualidade da atração e da intensidade , que nos mantém o valor enquanto uma aposta que vale a pena, um esforço de aprimoramento constante que esculpe nosso mundo de dentro , à começar por nossos modos pelo lado de fora.
A fala por exemplo , o mal da boca , aquelas palavras sem consequências , a ignorância deliberada dos efeitos , fala-se e pronto , talvez algo que dito em outra hora, ou de outro modo provocaria menos estragos .
O cuidado com o não-ofender , a não-violência em níveis sutis , o ter em conta que da mesma forma o outro sente e reage , o aprender que nem tudo é tão grave assim , e que deixar pra lá , em muitas ocasiões não é vergonha nem derrota, pois não se trata de uma disputa ou de uma arena .
É incrível que ao mudar nossos modos , mudamos também a forma de ver as coisas , como se aos poucos tirassemos delas a severidade , a acidez crítica que contamina tudo , e ao mesmo tempo ganhamos em sinceridade não-ofensiva , a expressão que consagra nosso ser, o poder dizer sem matar , a palavra que celebra a vida e chama o profundo com ternura e delicadeza.
Todo analista sabe que as projeções são imperiosas e cheias de razões particulares, e que enquanto isso não quebra , a pessoa não é tocada a nível de uma reversão , um modo de reconhecimento do que lhe cabe , do que é seu e só seu , única maneira de começar a sair dessas pequenas e custosas prisões emocionais que nos infernizam a vida.
Quando um casal, por exemplo, começa a perceber o convívio , não mais como um conjunto de projeções autorizadas sómente pela neurose de cada um, mas como um modo desafiador de aprender e de se curar , começa a surgir ,o que em geral ,começa a faltar nessa ocasião, ou seja , a gratidão pelo presença companheira , o valor do lado-a-lado , que o tempo ensina aos que conseguem afrouxar o cinto de suas onipotências.
Se por um lado ninguém é de ninguém , mais uma razão para nos agradecermos ,pois sustentamos um pertencimento por amor e só , reiterando assim que estamos aonde estamos porque assim queremos , e não como vítimas do que não foi possível .
A burrice relacional começa quando esses preceitos tão nobres ,e não se vive sem nobreza, começam a serem tratados como óbvios , crime grave que arrolará muitos processos desagradáveis e sentenças serão aplicadas , ou como culpa ou como castigo , lugar onde os fracassos, ao invés de ensinarem se tornam desgraças, cujas dores nos farão chorar , um prognóstico sinistro quanto a nossa capacidade de amar de verdade e onde o orgulho foi péssimo professor .
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Muito boa a argumentação que começa aqui e se prolonga na segunda parte da reflexão.
ResponderExcluirO empacamento em qualquer lugar é perda de tempo (prefiro não usar burrice, que me parece agredir à delicadza das relações). O fato é que mais cedo ou mais tarde, todos precisam sair do lugar, independentemente do motivo que o prendeu alí até então. Enquanto não se sai, explica-se. Buscam-se justifcativas que fundamentem a decisão teimosa. Buscam-se adesões à própria causa, fazendo-se um arrazoado, como quem aguarda um julgamento. O culpado é o outro (projeção?) que é julgado à revelia, sem poder pronunciar-se, pois esses são tribunais de exceção que funcionam na penumbra, a portas fechadas, só entre os pares.
As relações humanas são assim. Falta-nos, na maioria das vezes, inteligência emocional. Sair desse círculo, compreender que o outro não age contra contra nós, mas por sua própria limitação em expandir-se, e compreender igualmente, nossas restrições em relação a ele, é ser livre. Ser livre para aceitar o outro como ele é e, principalmente, para amar-se, não obstante a consciência das próprias limitações. Com essa consciência constroi-se a dignidade de uma relação limpa, verdadeira.
Confusos, vivemos agarrados à uma dualidade do tudo ou nada, do amor ou do ódio, sem possibilidades do meio termo. Mesmo que não tenhamos afinidades, não sejamos amigos, nem amantes, não quer dizer que nos odiemos, que não possa haver cordialidade, respeito e nobreza entre nós.
E por aí vai, esse é um assunto que transcende. Eu é que fico por aqui.
Obrigada mais uma vez por nos estimular com suas reflexões. Bj