Ainda em nossa reflexão pelos modos da subjetividade , este mundo tão
incrível de onde partem todas as glórias e todas as injúrias , lugar onde se
busca marcar o que se quer e onde se sofre do que não quer, chegamos ao início
da conversa , ou seja , como na música é preciso buscar o tom .
Em " As palavras e a boca " aqui mesmo no blog tratamos desse
momento crucial onde as palavras ao sairem fazem destino e implicam o falante
de diversas formas , mas hoje tratamos do tom , é, esse tom imprescindível que
compassa a melodia e torna possível a escuta , a escuta que recebe e qualifica
ou a que deprecia , lugar de atritos e antagonismos que trazem consigo o ódio ,
o medo e a culpa por um lado e por outro a admiração , o sentido de descoberta
e a gratidão da companhia .
O tom é o a mais , é o que não está de pronto , tem que ser descoberto ,
não existe apriori, pertence ao campo da intuição e do amor , pois é ele que
irá decidir o depois, ao mesmo tempo que decide o que irá acontecer já .
Podemos e talvez devessemos sempre buscar o tom em tudo , o tom da manhã
, da noite , o tom da transa, da comida a saborear , o tom de si e do outro , o
tom que indique a sinceridade da palavra e não mate a conversa , o tom da hora
de falar e também de escutar, enfim , o
tom que acerta no alvo sem machucar , sem ofender , o tom da franqueza amorosa
.
É como se admitíssemos que o universo tendo sua musicalidade ,nos
caberia a cada situação descobrir o tom , sendo esse o lugar onde a fluência se
torna possível , ou seja, a música segue , nos convocando a outras descobertas
.
Caso não seja assim, é como se o disco estivesse arranhado e ou com
sulcos que fazem tudo se repetir de forma muito desagradável, um tipo de
reverberação mental onde se volta ao de sempre
mas no contra-fluxo , isto é ,perdeu-se o tom , daí pra lá só
desarranjos .
Como somos seres do verbo , isso então fica mais onipresente se
inserindo constantemente em nossa forma de falar uns com outros , nos
permitindo visualizar que nossas palavras expressam o tom de nossos estados
d`alma, revelando o que de oculto tentamos esconder , em geral , antagonismos
não reconhecidos ou pouco admitidos , que nos fazem desafinar , apesar de
nossas boas intenções.
Se encontrarmos o tom , as palavras soarão diferente e seremos escutados
com mais acuidade , permitindo que o sincero não seja deselegante , e fazendo
da expressão um momento de revelação , algo inusitado , confessional , e que
toca no fundo , pois invoca ressonâncias que penetram e estimulam o respeito na
recepção.
Palavras demais e repetitivas , reverberativas,são uma questão de quem
quer ganhar , expressão de onde cada um de nós se sente ou se sentiu lesado ,
onde o toca-disco está com alguma falha estrutural , e que faz com que cada
situação se torne um embate para auto-afirmação.
É isso que nos dificulta achar o tom, pois ao invés de sintonizá-lo
primeiro, procuramos impô-lo às
situações de forma onipotente, partindo da suposição que ele é quem
define o como deve ser , o modo como nossas razões procuram se antecipar na
busca de seu reconhecimento.
Obviamente,convém lembrar que todos sofremos dos mesmos males e das
mesmas afirmações , pois nos conhecemos em nosso convívio milenar e sabemos o
arsenal que temos,com armas variadas que vão do sutil ao estúpido . Logo a cada
situação de convívio tudo retorna , desde estratégias para ganhar até fracassos
magoados , derrotas que grudam e prometem vinganças .
Achar o tom é um trabalho de cura , um desgrude emocional de si mesmo
para uma passagem de nível , um lugar melhor onde minimizemos as disputas ,
onde reconheçamos o que nos pertence e torne possível devolver o que não é
nosso. Um tipo de triagem que nos remonta aos modos emocionais da família com
suas exigências e idealizações e que nos trazem encargos que incorporamos e
nunca conseguimos dizer não.
Quando o trabalho de diferenciação se faz possível é quando o não saí
das entranhas do ressentimento e se torna um lugar plausível , um lugar
reconhecido e legitimado , onde reconheço o direito de recusar o que não me
convém .
Se faço isso , e em geral, depois de muito sofrer pra se livrar de
dívidas e culpas, no que o código de rigidez interna se torna mais flexível ,
posso buscar dizer sem ofender , primeiros ensaios no campo do amor que promove
a autenticidade , como escultura de uma singularidade recuperada .
Da mesma forma o outro se movimenta , pois seu lugar também muda , pois
o vejo como alguém que não sou eu , uma vida própria , um estilo próprio que
não pode se sustentar como objeto de minhas projeções autoritárias , me liberto
libertando o outro de mim , refazendo fantasias primárias de que sou o centro
não copernicano do universo .
Osho , o Mestre rebelde,ensina que uma pausa é um intervalo entre duas
notas , um des-lugar para novas revelações , uma amplificação da recepção onde
o não-limitado pode comparecer e novas melodias podem surgir .
Talvez descubrir qual é o tom , requeira uma pausa , um modo consciente
de respiração , onde o que está grudado,mesmo que incipientemente , precisa
afrouxar , uma redução da gana , um tipo de solvente para as reverberações
obssessivas , onde a obssessão única é dar razão a si mesmo e querer que o
outro confirme.
Um intervalo pode ser uma oração profunda , um apêlo superior para
desconstrução de velhas razões rancorosas , uma redução de tamanho pela
humildade flexível , uma versatilidade onde o resultado,seja qual for , não é
uma mordida irreparável no meu ser , não é uma ofensa que não possa ser
revertida em compaixão .
Sabemos que tudo nos ofende dependendo da ocasião , é como se em algum
nível de nós mesmos, feridas atávicas e doídas comparecem e nos sentimos tão
maltratados , tão incompreendidos que sequer nos damos conta que essa é uma
condição comum .
Não há o "Outro" dizia Lacan ," é impossível" , e
corroborado por seu discípulo Didier Anzieu que escrevia : " o Outro não
dá não é porque não quer , é porque não pode, já que não tem".
Óbvio, que para nós quando não recebemos o amor pretendido , esse
encontro marcado pelas nossas expectativas , nos frustramos e ficamos raivosos
, nossa primeira atuação é o ataque sem grandes considerações, fomos sacaneados
de forma injusta , à guerra para reparação.
No entanto, é também nossa prisão, o que não nos deixa dormir , o que
escurece o dia, o que vai direto para os nervos, o que faz sucumbir o humor , é
enfim , o que precisamos aprender a falar e para isso , na medida em que
queremos nos libertar , não tem jeito , temos que saber, qual é o tom mesmo?
Tem razão Alex, geralmente é o tom que defeine o desfecho da conversa. É preciso ensaio pra não desafinar. Achar o tom demanda tempo e espaço. Espera e distanciamento. Coisas que nossas urgências nem sempre sabem manejar, aprendizes que somos. Mas afinar nossos instrumentos relacionais é uma prática prazerosa porque os resultados sempre produzem melodias agradáveis de se ouvir. Beijo pra ti.
ResponderExcluirChris
Isso aí, estou justamente nesse trabalho de cura, reconhecendo a dor, e ajustando o tom para poder melhor conviver......Aline Braune
ResponderExcluirAna Lina disse...
ResponderExcluirO tom? Aqui, é perfeito! Aquele que "acerta o alvo sem machucar", que lembra, antes de tudo, a Musicalidade do Universo...aqui, o tom desce e faz descer (como psiquê,na melodia, descendo os degraus para o mundo das sombras)e na descida, provoca e convoca o uso de outras notas, talvez mais altas, com possibilidade de nova e consciente melodia!
Lembrei de uma composição do Walter Franco, cantada pela Leila Pinheiro " viver é afinar o instrumento, de dentro pra fora, de fora pra dentro; a toda hora, a todo momento..."
Então, vamos seguindo, na Grande Musicalidade do Universo, encontrando nosso tom, pois, como vc diz aqui tão sabiamente, "achar o tom é um trabalho de cura".
Obrigada por mais um tema tão pertinente, bjão!!!
Estreitar os laços, buscar um tom perfeito para uma boa convivência. Meu Deus, como às vezes é tão difícil! Na maioria das vezes caímos exatamente no que já foi dito: “o Outro não dá não é porque não quer, é porque não pode, já que não tem". E aí, nos anulamos? Trocamos de instrumento, ou ficamos a vida inteira a buscar o tom da para a nossa melodia? Quer solução fácil? Chega de orquestra! Cada um toca seu instrumento no seu tom. E viva o livre-arbítrio!!
ResponderExcluirAmei o tema! Abçs