30.10.11

A VIDA TRIVIAL



Estimulado por uma chamada de Bert Hellinger em seu livro " A fonte não precisa perguntar pelo caminho" sobre a vida trivial , decidi escrever algo a respeito .

Um tanto surpreendido pelo tema e principalmente pela afirmação de que só é possível ser feliz aqui , na vida trivial, me pus a meditar, e de pronto , meus apelos transcendentais se arrepiaram em protesto .

Descobri , por exemplo, que desde sempre me referi a outro lugar , um lugar inominável , um endereço querido e nada específico , um tipo de cenário sem objetos, uma senha de passagem , embora sem poder dizer pra onde.

Lembro que em muitas ocasiões de estreitamento no convívio , aquelas que tudo parece bárbaro e caótico , onde o ogro interno comparece e o anjo desaparece , em que a vontade assassina se revela , mostrando a precariedade das premissas civilizadas , meu consolo estava justo no apelo para aquele lugar a que me referi .

Mas examinando mais de perto , na força da proposição de Hellinger , vejo também que era um lugar só, ou seja, um lugar de mim, reflexo da minha capacidade fantasiosa de eliminar o outro , sem muita consideração .

Ao mesmo tempo , o exame da resistência em tomar o trivial como lugar da felicidade , também me levou a outros pontos.

O trivial pra mim sempre foi dúbio , ambivalente , amoroso e odioso , estreito e amplo, e aqui verifico o quanto a emocionalidade das situações de convívio, ditavam o céu ou o inferno do cotidiano , com seus rituais de coexistência.

Um estar além, mesmo sem saber aonde, me dava impressão de desafogo , um halo de transitório de algo que vai passar, e na frente a vida será outra.

Meus relaxamentos usuais se assentavam nos prazeres que os rituais proporcionavam, como uma boa comida , um encontro festivo em família , as farras com amigos, os namoros , enfim, uma linguagem comum , que conjugava também minhas exigências, meus conflitos e, por muitas vezes , a exarcebação de meu pertencimento ao futuro .

A liberdade de sonhar com outro mundo , por muitas vezes me pareceu um desejo de não-pertencer, a falta de identidade , principalmente em família onde o estar-ali , me parecia uma queda , um sufoco a qualquer pretensão maior .

Percebi, no entanto, que isso tinha haver com os nichos de mesquinharia que toda família tem em maior ou menor grau , aqueles momentos onde a vida em comum, determinada por laços biológicos, parece uma metafísica de algum desejo equivocado de algum Criador .

Mas a consciência maior é descobrir que esses nichos renegados , também existem em você e de tal forma , que descobre-se , não sem surpresa que o outro mal-dito , é o modo como você mal-diz .

Disputa-se lugar na família , no amor dos pais , a tal ponto diz Freud que o maior medo da criança é " perder o amor dos pais", o lugar radical do desamparo , a principal angústia da espécie junto com a da castração .

É difícil não se sair machucado da ordem familiar , descobre-se por exemplo, com Lacan que a completude é " uma antecipação à uma condição de dependência", uma precocidade que só funciona no imaginário , ou seja , a imagem esconde o que se depende.

E Hellinger diz que se é feliz " quando pai e mãe podem viver em nós livres ", afirmação ousada e importante , pois supõe a cura das projeções primárias, aquelas que Melanie Klein tão bem estudou e nos deixou como legado.

Mas o sutil aqui , me parece é que pai e mãe perdoados , é também nossa libertação pelo perdão , o receber o que foi possível com gratidão e devolver o que não nos pertence com consideração .

Hellinger de certa forma , recoloca em outros termos e com outra abordagem , um tema caro a análise Kleiniana , quando se trata da inveja e gratidão e principalmente na lida com os impulsos destrutivos que geram culpa e exigem reparação .

É preciso reparar e agradecer , o que significa reconhecer o que recebeu como alimento para matéria e para o espírito e tomar seu lugar na ordem familiar diferenciando os direitos próprios ao lugar e devolvendo com consciência o amor investido .

Em outras palavras só vive quem deixa viver , sem espaço para os pais viverem , a vida é opressiva , pois da mesma forma como vivemos nos pais, que abriram espaço para nos receber , temos o mesmo por fazer , trabalho árduo , pois muitas das feridas que carregamos encontram-se no cerne dessas relações .

Obviamente que esse pertencimento mesmo não tendo uma ordem regular , não permite negação do pertencimento , pois se nasce de alguém e é preciso considerar tal fato como a matriz do humano , já que essa ordem familiar é transgeracional , nos diz Hellinger, e se encarna, nos fazendo encarnar , inclusive , lugares de outros , já passados.

É nessa visada que a vida se rege pelo comum , um constante acerto consigo mesma , um aqui cheio de vida , de dores e alegrias que subjaz na forma de torrentes dinâmicas , que inclue o trivial com suas nuances e também os sonhos , a reparação que a ordem faz ao recolocar o que lhe é devido .

Hellinger , diga-se é um pensador de forte teor espiritual e sua concepção implica à diferença de Freud, uma Cosmovisão , mas uma imanência relacional ditada por ordens que estruturam a vida e parecem buscar sua reverência a um poder superior .

O trivial, ao mesmo tempo que se oferece como uma disposição , um modo como tudo se dispõe, é o lócus de um belo exercício espiritual , pois é o cenário oferecido pela vida para sua consagração , pois esse comum é aonde as forças profundas da alma se movimentam em sua busca de realização e instaura seus novos movimentos .

O Além, em seu nível operacional , é o modo como a alma orquestra seus movimentos pelos silêncios , pelo reconhecimento dos limites e pelo se deixar conduzir , o uso da ponte que nos leva ao desconhecido , mas que é regido por uma fonte que rege tudo.

Penso nos poetas , esses que parecem se nutrir tão disso , pois falam do familiar de uma forma não usual , descrevem o comum com imagens tão sugestivas que nos surpreendem , pois embora estejamos vendo o mesmo , na poesia é tão outro que lamentamos a falta de alcance de nossa linguagem.

No diário da vida inscreve-se o profundo , mesmo que em níveis superficiais , lembrando a "banda de Moebius" que Lacan consagrou , pois o que está dentro está fora e vice-versa , mas o que Hellinger parece ensinar é que mesmo em atos ordinários está contido todo extraordinário que rege os fenômenos singulares .

Hoje ao olhar o trivial , o comum , o cotidiano enquanto compasso do Cosmo , não vejo outra coisa, a não ser essa reverência que se começa lá no modo como fomos recebidos ,e veja-se aqui, a contribuição de Groff das vivências perinatais , e que torna nossa estadia por aqui um profundo momento de nossa alma , enquanto peregrina de um tempo eterno , de um tempo que, se não teve início , também não tem fim.

Agradeço o aqui , e agradeço o lá , agradeço o meu estar aqui , pelos amores que recebi e recebo e pela oportunidade de fazer valer a vida pela única capacidade que a faz despertar quando sai da inconsciência , o Amor.

Viva Hellinger

 

 

2 comentários:

  1. Ai, como é confortante ler esse texto, logo assim, pela manhã, quando se foi dormir com questões de harmonização entre o "aqui" e o "lá". Ando por aí. ainda buscando a medida das coisas. Nem perder esse "lócus de um belo exercício espiritual , pois é o cenário oferecido pela vida para sua consagração", nem dispensar o conforto de "estar além, mesmo sem saber aonde" e desfrutar dessa "impressão de desafogo , um halo de transitório de algo que vai passar, e na frente a vida será outra." Obrigada, mais uma vez. Bj

    Chris

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  2. Viva Hellinger, sem dúvida, alguém que pouco conheço e que acaba de me ser apresentado por seu texto. Não tenho formação em psicologia, mas tudo o que li até agora me deu mais "simpatia" por Jung do que por Freud, já que esse não se interessou pela dimensão espiritual que sempre acreditei importante.
    Quando você diz "Mas o sutil aqui , me parece é que pai e mãe perdoados , é também nossa libertação pelo perdão , o receber o que foi possível com gratidão e devolver o que não nos pertence com consideração.", é perfeito, creio que este é o ponto fundamental na partida para a conquista de uma, digamos, serenidade: aceitar o que foi bom e deixar o que não servia num lugar externo à mim, sem sofrimento.
    O trivial é precioso também, nem que seja como contraponto ao sonho, o trivial é zen...
    Grata pelo texto
    Cyntia Motta

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