18.12.11

A BEIRA DO CAIS


A imagem do cais enquanto lugar do que vem,do que vai , esse fluxo e refluxo de expectativas e esperanças,pode ser tomada enquanto um limiar , um limite , que por um lado nos dá a imensidão e por outro a cidade .

Ao olhar para essa imensidão, nos vem tudo que não se nomeia , um para-além das representações , um silêncio vibracional , uma dimensão tão extraordinária , que ao mesmo tempo fascinante, também temerosa.

Uma filiação metafísica renegada , um esquecimento do tempo de jornada , a figuração do peregrino que vem da noite dos tempos , que anda desde longe e que um dia espera chegar, os diferentes matizes de todas as dores , e a liberdade não confinada do mistério misterioso.

Eis o que diz " Fernando Pessoa: Quando chego no meu limiar não sei se sou louco ou um mistério misterioso".

Esse limiar apontado pelo poeta é o cais entre o aqui e o lá , entre o que parece não ter limite e tudo que para viver se reduz ou se ordena , como se fosse um manto que protege, e ao mesmo tempo confina .

Ao vigor do olhar para o horizonte, nos vem o estranho endêreço que não podemos contar a ninguém , pois também não sabemos onde fica , o sentimento de pertencer a uma imensidão e ao mesmo tempo navegarmos nos limites das margens estabelecidas , uma vida que sonha com outra , mas naõ consegue se despir de sua própria imantação.

Ao começar de novo, o início pelo nascer, já sofremos a ruptura , um corte , cuja dor trazemos em si , e embora o romantismo necessário da infância inocente , temos a amargura do que deixamos para recomeçar , um ciclo que parece marcar o tempo pelo que confina e pelo que nos solta.

A cidade enquanto metáfora, é o lugar em que tudo se vincula , tudo se apega , nada do que quer ser deixado , onde tudo faz questão de suas próprias razões , é onde a vida reproduz seus atavismos , enquanto retorno das antigas pendências do desejo , os apêlos aos velhos objetos de sempre , a morte como conclusão da mesmice.

Se, como diz a Psicanálise, o que queremos é o impossível e temos que nos assujeitar ao possível, então nessa dobra do apêlo que é obrigado a voltar pelo que não há , temos aí o que o mundo nos oferece como compensação , ou seja, seus fetiches , suas máscaras de amor , seus consolos de consumo , seus objetos possíveis , modulações do impossível .

Nosso sonho nessa instância é de ter o que nos devem , à recusa da Lei que não permite uma plena saciação , o movimento pelo desejo insaciável no deslize de seu objeto que não há , o objeto "a" de Lacan.

Mas o que aprendemos nessa Cosmovisão do herói condenado à imanência do que há , é que não tem outro jeito , ou seja , estamos fudidos e mal pagos , não há ponte para o além , apenas acertos em menor escala com o que há por aí.

Sonhamos com o maior para nos consolar com o menor , a vã esperança de que um dia , quem sabe ..... algo aconteça e ....... nada , absolutamente nada , que não resulte em areia quando o vento começe a soprar.

Essa é uma visão que inverte a ascese e negativiza o início , pois torna a vida um campo cheio de ilusões, onde as afirmativas só legitimam o estatuto de prisioneiro , ou seja, estamos numa prisão, que ninguém sabe onde está a chave pra sair.

Eis o que diz o rei Lear na tragédia de Shakespeare,"Quando nascemos, choramos por estarmos chegando /A este grande palco de bufões".

Choro de quem afirma o direito a vir e a viver, e de quem retoma a caminhada , vindo de outras pairagens , onde o tempo não confina e o sonho é o que aprimora o possível .

Mas convém lembrar, no entanto, que segundo Platão sofremos de reminiscências , lugares onde já estivemos e cujas lembranças nos acompanham , o mundo de onde viemos e pra onde voltaremos , a pátria perene segundo seus ensinos.

A esta altura observamos que estamos entre lá e cá , como a discutir nossa origem pra saber nosso destino , pois a cidade nos oferece o consolo do berço e nos entrega aos braços da família , ou seja , nos interpreta o início pela raiz de nossa biologia e nos assegura à familiaridade .

Por outro lado a vida não nos poupa de questões maiores e difíceis pelo fato de nos protegermos em família , afinal , Buda é o que rompe , o que não se confina aos limites do familiar , pois sabe que a vida é outra coisa e família pode enganar e muito.

Eis o que pergunta o escritor japonês Hiroyuki Itsuki , em seu livro Tariki "O que vem depois? O que se segue a essa percepção? Nascemos em lágrimas, somos oprimidos pelos grilhões do parto , da velhice , da doença e da morte ; existe algum meio para que a pessoa , como indivíduo , leve uma vida que seja altamente gratificante e cheia de esperança e vitalidade , apesar dessa carga?"

Hiroyuki propõe a negativa radical como ponto de partida e diz " Aceitemos essa visão da existência. E então perguntemos: Embora nasçamos chorando, não há um meio de morrermos sorrindo? Não é esse o verdadeiro fim e objetivo de todas as vidas?

Importante dizer, que partindo do Budismo , Hiroyuki sabe da vida como" Maia a grande ilusão", nada do que apetece aos sentidos interessa , não se deve perder o desprendimento, a iluminação contra as pregas da cidade .

Mas nós temos a cidade na conta da própria vida , principalmente quando num erro histórico caríssimo , deixamos a "transcendência" como filha bastarda das religiões , pois aonde o apêgo é maior convém lembrar mais.

Se, ao olharmos na beira do cais para o horizonte, sentimos uma presença indiscriminada de tudo, e fechamos os olhos como uma benção de agradecimento , é porque este lá é também aqui , ou seja, uma disponibilidade manifesta e afim , pois nos permite sentir à inclusão , um para além de mim , que age como uma voz que chama e que é capaz de comover profundamente.

Se queremos o que não há , talvez seja importante refletir o que o desejo pode ver , pois mesmo sendo seu objeto fugaz e o que não permite totalidade, este são os olhos do desejo , aquele que quer sempre e mais.

Mas e se não quisermos? ou pra ficar mais acessível :E se não quisermos tanto? algo se relativiza? Uma vida considerada modesta é também uma inserção no campo do desejo , pois não se trata só do dinheiro como poder de aquisição , mas de um modo de viver que pode ter deste campo uma outra interpretação .

A questão do desejo é também o seu imediatismo , seu mais gozar incessante e insaciável , que além de mover a vida nas instâncias que lha são afins , move o capital e por aí o mundo.

Mas se viemos de outro mundo mais desprendido, e do qual temos cidadania , talvez paguemos o preço de recalcá-lo , por conta de um grande engôdo que sacrifica nossa transcendência , nossa capacidade de não querer por não valer a pena , isto é , se sofremos a sindrome do imediatismo , porque deixar pra depois?

Entendemos que o imediato é que é , nosso descolamento é visto como perda de oportunidade , toda raiz do que iremos chorar depois no arrependimento , pois não se trata do gozo e pronto , mas de ficarmos presos, mesmo que pelo prazer, nos lugares onde iremos sofrer da força de retornar.

E retornar a cada vez, nos faz ter a estranha impressão de que já estivemos por aqui, e mais uma vez aqui estamos , como a nos haver com as pendências onde o desejo nos faz voltar e tentar fazer diferente , um tema caro a filosofia contemporânea , o repetir diferenciando .

A questão é que pra nós ocidentais, o Paraíso ficou monótono e o pecado muito mais dinâmico e interessante , pois há fogo , a quentura própria à tentação.

Obviamente , que essa leitura do Paraíso é equívoca , pois não havia ali o Outro , o terceiro, que só pode se por como serpente , pois o humano não pode antecipar , somos o três , temos ainda muita possessividade por se resolver e adoramos nossa incompletude , já que dessa forma nos apegamos e nomeamos nosso patrimônio.

Paraíso é pra quem já pode largar , pois não precisa e não quer mais , a quebra dos grilhões do que o desejo promete e não cumpre , o exílio do não querer , a maldição dos que podem viver e dispensar , pois sabem que para morrer sorrindo é preciso deixar tudo aonde está e morrer como aquele que viveu com a pura e simples gratidão dos que por terem tudo , não precisam de nada.

Amigos , devolvam por favor, às vezes os temas parecem um pouco mais complicados e eu temo não conseguir simplificá-los . Agradeço o carinho e o saco de ler . Valeu

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Um comentário:

  1. Alexandre,

    Acabei de ler e achei maravilhoso!
    Pense mesmo no livro.
    Você tem que ampliar os horizontes da sua sabedoria.
    Um grande beijo,
    Fabiana

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