Ah! que lástima não falarmos mais em estados d`alma , aqueles estados
imprecisos , sem origem imediata , um gosto enorme de saudade e ausência ,
estados que os poetas tem como matéria prima da poesia . A "ausência"
é a razão da poesia , diz Rubens Alves , e é , não só da poesia , mas do
momento místico , onde todos nós quando distraídos , a vivemos num tipo de
solilóquio tão sincero, que a mente , que mente, se assusta e foge.
Foge como?
Voltando rapidamente ao de sempre , ao usual , velho objeto conhecido do
medo , aonde havia lacuna no encadeamento , fecha-se de imediato e retoma-se à
familiriaridade , que nos garante uma identidade compacta , sólida , uma
excrecência resistente ao tempo e às acuidades , onde moram e nos espreitam,às
questões maiores da vida.
Um vácuo que se abre entre eu e mim , uma estranha sensação que não sou
exatamente quem me digo , e o que digo , não, não pode dar conta do que sou.
Um tipo de divisão não-analítica , um gosto de estranho no ser , como um
antigo enderêço longíquo , mas não
esquecido , onde algo muito importante de mim parece morar , mas não há meio de
transporte possível para me levar , quando quero .
Só vou lá , distraído e sem pretensões , uma desconfiança que faz brotar
em mim , que todos meus preenchimentos são relativos , que toda a ritualística
que me compõe é um tipo de atração de ilusão opaca , já que nesses momentos me
pareço mais, com algo que se esvai, do que com que fica.
E não adianta o esforço de prender , pois se esvai, é como um éter , um
misto de lugar híbrido entre a vida e a morte .A consciência não é a mesma , e
alguma coisa indescritível se aproxima , suspeito, que seja, o que se chama de
alma e há uma estranha amplitude , como se meu pertencimento, se ampliasse
quase todo, e eu fosse uma convergência de focos variados , muito além do que
meu usual pode conceber.
Algo profundo ,que roça as angústias , como se eu estivesse por aqui
para alguma coisa importante , que não reconheço em detalhes e pouco soubesse
falar , mas sinto com profundidade que meu foco nesse momento sou eu mesmo.
Como se fosse um velho acerto de contas de mim para mim, não há o outro
nesse momento, uma velha conta, uma velha chaga , as raízes encrustadas na
noite dos tempos, em que nunca me soube . Nasci há 10000 anos atrás , minha mãe
é a eternidade e meu pai o universo , vivo por aqui na esperança de um dia
poder ir , ir sem medo , recuperação lúcida de um enderêço original, de um gozo
sem objeto , de uma plenitude sem conteúdo , um se deixar levar unicamente pela
reverência , a dimensão mais plena do sagrado.
Há um exílio e digo porque sei , porque vivo , o passar relativo de tudo
, como se tudo não fosse para agarrar , mas apenas tocar , sentir e deixar ir ,
nada fica , a sensação de tudo que esteve aqui e se foi .
Mas é estranho viver assim, angústias que chegam e assumem as feições do
desamparo e do desafio, que mexem com todos os medos, com todas identificações
que não cansam de se queixar,ora se vitimando , ora pedindo arrego, e ora
cobrando preços pelo trabalho que tiveram.
Não tenho de pronto nenhuma identidade com o vale desconhecido , vejo
assombro e imensidão demais , o sofrimento das grandezas , do ínfimo ao
infinito exuberante , um gosto de quero mãe e da morte me levando sei lá pra
onde, uma mutação indescritível, um laboratório de solidão, os fios que me
puxam pra lá de mim.
Quero ficar , quero ir , um pêndulo que me oscila , um jogo bi-polar sem
a organicidade neurológica , um fino tecido metafísico , uma inter-polação
entre a origem e o fim , entre o que se abre e o que se fecha , entre o
contorno da forma e a expansão sem limites , um tremendo gosto de aventura e de
anormalidade além dos modelos.
Aqui só solilóquios , as vezes excessivos , peço para se calarem sem ser
obedecido , mas a única forma pelo qual me situo , a conversa anexa e desconexa
que me faz companhia.
Pergunto tudo e ouço tudo , mas tudo vem aos poucos ou instantâneo , não
escolho , apenas recolho , vou procurando ser obediente , pois sinto a
liberdade bem perto , sinto à loucura, dos loucos e dos santos , breve
diferença de sintonia profunda .
O caminho é longo e por vezes inalcançável , um duro ter que caminhar na
cumplicidade dos dias, no afago ou nas tormentas das noites , e um pouco de
infância no crepúsculo , o júbilo familiar dos interpares assimétricos .
"O que me move é o que me comove" , diz um amigo culto, lhe
agradeço , pois é um belo aforisma. Mas me comovo também com o modo como busco
me mover , torço por mim, sei que me preciso , narcíso , não posso permitir o
desencanto , pois gosto tanto de cantar , mesmo que mal.
Mas o que me comove mesmo é olhar para o lado , sinto a presença de
todos , o humano em mim, a controvérsia
cósmica entre o máximo e o minímo , entre a luz e as trevas , entre o amor que
ilumina e abençoa e o ódio que fulmina e imperdoa , a "poesis" do que
se esculpe.
Niestzche nos pensa como "obra de arte" , cada um com a tarefa
de se esculpir , um ato corajoso e forte , uma ética ou uma estética para almas
destacadas . Aprecio o Super-Homem , acho incrível pensar em super , como acho
a mesma coisa em relação ao infra , em tudo há vida .
Mas meu sentido de pertencer me compromete tanto , me comove a dor , a
pobreza, o conflito , os desalmados , os despossuídos , que só me resta
trabalhar , a escultura do coração cristão , pois sou a favor do Cristo que
liberta , pois fora desse, também sou o Anti-Cristo .
Ao mesmo tempo que alcanço os píncaros da solidão ímpar , sou puro
exercício nos interpares , a oferta do dois , a modéstia consentida e
reconhecida para o movimento do convívio . A forma é um meio abençoado de se
estar junto no que ainda não se emancipou.
Reconheço meus parceiros , no aqui e no ali de qualquer situação ,
querem o que eu quero , mas sei que se dizem de outra forma , talvez as matizes
da escultura ditada pela evolução espiritual , o Deus que Nietzche não viu
aonde estava e que a Igreja escondeu.
Estar vivo é estar só e participar se incluíndo , o balanço do um e do
dois simultaneamente , o fazer evoluir evoluindo , o amar amando , o gozar
gozando , o ser sendo , a presença estando presente .
Somos todos iguais nesta noite , diz a música , somos todos diferentes
diz a Psicanálise , que bom que seja assim , iguais e diferentes , o colo do
igual e a diferença do desejo , essa "multifrenia" como diz o autor .
O radical, a raiz, é este imperativo único, que lembra o ditado
espanhol" Porque justo a mim me coube ser eu ?" . Sou a vida , sou a
morte , sou a dor e a alegria , sou o que pareço e o que não compareço , sou a
angústia plena de um mistério que me possue todos os dias , a misericórdia que
perdoa e o ódio que acusa , o amor que dá e exige , talvez eu seja o lugar
aonde a vida brinca consigo mesma.
A mim , me resta então perguntar com Jung do alto de seu solilóquio de
vidente " O que a vida quer de nós?"
Valeu , comentem , ajuda muito os comentários.
Texto belo,líquido,yin... mas será mais eficaz, se for lido do lugar que ele convoca...e assim, Alex, você nos oferece um texto que pode ser 'escutado', interiormente...com possibilidade daquela leveza que provém da sintonia com o nosso 'centro'.Aqui não tem retórica nem debates,pois suas palavras fazem vibrar o 'solilóquio'do lugar que todos precisam frequentar...desse lugar, eu louvo a tarefa de ter que me esculpir, meu sentido de pertencer, essa forma como "um meio abençoado de estar junto no que ainda não se emancipou" e a vida 'se' brincando em mim...fica tudo certo!
ResponderExcluirO "me comovo tb com o modo como busco me comover", me comoveu...
Gratidão da sua mulher (nada de anonimato...rs)