A vida anímica é pra nós a vida por excelência , a vida em
que nos encontramos , em que nos praticamos , onde aprendemos o mundo , e a nós
mesmos.
Desde sempre, é essa vida pela qual lutamos , cenário único
de nossos embates e onde vamos adiante na busca de ser feliz . Esse mundo é a
nossa crença favorita , guarda –roupa de nossas vestimentas , desde as usuais ,
corriqueiras , até as mais luxuosas de raras ocasiões.
Obviamente, é onde o mundo se compõe com seus arranjos e
desarranjos , com o grotesco e o sublime de suas concepções e onde todos nós
nos encontramos , como num grande palheiro que nos faz buscar conexões
invisíveis ou inexistentes , para dar algum sentido a essa imanência de
estarmos juntos sem saber exatamente para que.
Quem nasce ratifica e testifica o que existe , e promete não
só cumprir como animar as construções ancestrais , alcances e limites dessas
concepções que nos norteiam , que nos oferecem à estrutura e os modos de
segurança , bíblia importantíssima par nos poupar esforços desnecessários.
Somos atores com script definidos, e que temos por questões
singulares indefinir, já que o mundo muda quando nascemos ,uma vez que somos
representantes de um processo único e complexo , um enorme trabalho de energia
e desejo, que nos torna dependentes da significação.
Habitamos a todo tempo à significação e a buscamos em tudo ,
nosso lema é ser reconhecido e se possível amados .Essa estranha filiação ao
sentido , nos faz a princípio querer estar em tudo, como se nossa ausência
assinalasse uma dispensa , ou seja, minha presença , diga-se material, é a
senha da minha inclusão, preciso estar em tudo.
A idéia de ser esquecido é um tormento que nos força a um
tipo de grupalidade um tanto tribal , onde a solidão é vista como um negativo ,
uma falta do outro , um sentimento terrível que nos apunhala frontalmente , uma
pergunta sofrida e ácida de quem sou eu quando fico só?
Então , vamos nessa , tudo junto , o junto aqui como uma
forma de ocupação , um sentido visível do outro , a diluição do medo de escuro
quando a mãe está perto.
Isso anima a vida em todos seus rituais anímicos e seus
jogos de animação , assinamos essa forma de prestígio a cada dia , e
protagonizamos suas sequências , dia-após-dia.
A princípio, tudo nos faz acreditar que é assim mesmo ,e
qualquer modo de insubordinação é mal-visto , pois existem sanções nos estilos
também , já que o coletivo precede o individual , e a forma precede o estilo.
As ordenações, que merecem estudos a parte, regulam a vida e
sua forma de preenchimento, nos inculcando noções e nos direcionando para valores que , em
resumo, nos dizem o que é certo ou errado.
Vamos ser homem ou mulher , e se for gay já complica, de
acordo com os cânones estabelecidos , forçações ( não existe essa palavra,
inventei) ideológicas que reasseguram à ordem , a moral e os bons costumes ,
chavões de uma sociedade parasitária que não quer mexer com seus enganos.
Mas, se do ponto de vista coletivo , vemos o mundo com sua
maquinária apelativa e cheio de ameaças aos descontentes , por outro lado , do
lado da terceira margem do rio , onde a subjetividade não tem a marca de um
mero reflexo dessa mumificação social , nossos apelos singulares , nos cobra a
razão pela qual nascemos e se não fizermos diferença , embotamos o valor do
próprio nascimento.
O risco aqui é permanecer não-nascido no singular e com o
protótipo de personagens de animação , cuja liberdade está no limite mesmo do
seu desempenho , ou seja, o mundo me diz ao que vim , me prometendo suas
glórias e infortúnios , me oferecendo a possibilidade de não ter que me dar ao
trabalho de descobrir .
Nascer é forçar , é coragem , é encorajar-se para mais , é
um descontentamento perene com todas as promessas do mais fácil , é uma ruptura
profunda onde o que era primordial se faz supérfluo, e o que não tinha
importância parece então fundamental.
A viagem não se faz sem revolta , sem insubmissão , pois é
preciso questionar para saber , é preciso lançar-se , mas não para respostas
definitivas e cheias de certezas , não , o mote aqui é outro , por querer
nascer não sei quem sou ... e por favor não me digam , vivo de forma plena no
que não me satisfaz.
Penso o quanto a arte quer vida , o quanto o singular no
esteio do coletivo faz à diferença , e o quanto precisamos nos sentir únicos
para poder amar , já que o amor não pode ser o sufocar das diferenças , mas o
berço onde se nasce como celebração desse único.
Pois há um momento mítico em que essa operação profunda
cobra sua realização , já que na medida em que tudo vai passando , mesmo ao que
nos agarramos para prender , esses jogos anímicos de sustentação da vida vão
imperceptivelmente se esvaziando.
É como se os nexos afrouxassem, e os fossos se abrissem um
pouco a cada dia ,e como se de nós para nós, algum silêncio se fizesse , alguns
hiatos nos intervalasse e o mundo , esse tão familiar e estranho mundo ,
ficasse um tanto fora de foco , fazendo com que certa estrangeirice nos
apossasse , nos trazendo certa memória sem conteúdo.
Memória essa que nos remete ao que há de mais vago para uns
, ou ao lugar de ausências , o âmago da poesia , dizem os poetas , já que por
princípio o que fica é o que já passou , o inexistente com feições de saudades
, dores silenciosas de se saber, que no jogo maior tudo se vai e nada fica .
Quebra-se as identificações , essas molduras que nos
garantem feições socialmente ratificadas, e aos poucos começamos um longo
caminho a sós , onde as sonoridades diminuem , os frenesis já não interessam ,
e as conversas sem humor parecem enfadonhas .
Todo pequeno aparece como tentação , como apego , uma
sedução de não ir , como se fosse possível ficar , apenas um truque de se
permanecer acompanhado quando o funil aparece , ou companhias presentes para
uma alma ausente .
Tudo uma grande e bela recordação , um poema diria, um ir
não se sabe pra onde , mas com o registro de que todos vamos ,talvez para
descoberta do que nossa forma de viver encobriu , talvez para o mesmo âmago do
mistério que um dia nos trouxe.
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