25.4.13

A LÓGICA DO DEFUNTO


 
Se parece haver um compromisso inadiável da vida consigo mesma , é a renovação .
É impressionante como tudo obedece a uma Lei inexorável de se renovar , de ser outro, um movimento incessante de mudança que causa profunda admiração aos olhos de ver .
No que tange ao reino natural , a força mesma da natureza numa dinâmica invisível e precisa , faz com que a cada tempo , a cada estação , quando um ciclo se completa , haja um desencadear extraordinário de renovação que começa pela expansão ou pelo recolhimento e um laboratório se abre trazendo combinatórias vivas, reproduzindo a vida sobre novos prismas.
Dependendo de onde seja , do terreno geográfico , um show começa e novos seres nascem com cores exuberantes , enquanto outros morrem, como se o princípio da vida fosse também seu próprio fim , uma petição de mistério que nos ofusca à compreensão , mas deixando seu fascínio exposto como uma interrogação eterna .
Observar um pássaro na muda onde a plumagem inicial se esvai , fazendo surgir um ogro depenado e feio , para depois devolvê-la ainda mais bela e com cores incríveis, é um espetáculo privilegiado e comovente , como se o preço do viver e mudar mostrasse seu domínio em todos escaninhos da vida .
Esta petição misteriosa que já foi cultuada com grande reverência e que hoje é mais referida como objeto de estudo das ciências , nos seres conscientes em escala mais complexa , parece se revestir de feições enigmáticas e  seu reconhecimento depende do modo como conceitualmente é identificada.
Falar em renovação nos homens, por exemplo, é uma tarefa que levanta de pronto objeções , já que depende de entendermos o que é neste nível da escala esta renovação , e se não estamos tão sujeitos aos modos biologicamente determinantes , como nos renovamos ?
É preciso que haja algo mais do que as determinações que a natureza nos impõe ?
E neste caso , o que será ?
Na nossa espécie assistimos à mudança inexorável da matéria , suas mutações desde que nascemos e acompanhamos de forma testemunhal como nosso metabolismo e nosso corpo mudam , mas não relacionamos isto com nossa renovação propriamente dita . Antes pelo contrário , parecemos não relacionar mudanças esperadas e determinadas com algum vigor ou fôlego renovador .
O que muda sem nossa participação direta parece nos deixar como observadores passivos e não há aí correlações entre mudanças e evolução , correlacionando então que a renovação possa ser um meio da própria evolução .
Diríamos então que a renovação é o modo como a evolução se atualiza , fazendo com que soframos de tudo que ao não se renovar, nos obrigue ao custo de sustentação de formações que não atualizam à vida, tornando-a mais lenta e pesada , já que seus processos carecem do vigor que só a atualização proporciona.
Mas é difícil sustentar tal idéia sem ter em conta algum tipo de compromisso não-natural, que nos permita ou nos convença, de que mudar é uma condição de evolução , já que partimos da premissa de que por sermos não –naturais , não temos nenhuma programática que nos obrigue a tal esforço.
Estamos aqui enquanto um fenômeno biológico reconhecido , argumentam , mas não encontramos em nossos determinismos , nada que se refira à renovação não-biológica em nossas inscrições biológicas , de formas que nada nos impele à tal compromisso de forma definida , a não ser como opção particular .
A cultura neste caso , é que oferece de acordo com as visões de mundo reinante , os apelos para darmos à vida algum sentido renovador , que pode ser pela ciência ou pela religião , mas nunca como um compromisso que nos garanta o aforisma “ viver é renovar “ .
Garante-se assim o princípio de não-ingerência no campo das significações maiores , e ao mesmo tempo , subentende-se que a grande liberdade é que cada um faça e viva como lhe convém , uma garantia de direitos jurídicos, que apenas delimita fronteiras de proteção , mas não oferece a questão da renovação como pauta para o viver .
Cada um viva como queira , já que não entendemos outro compromisso com a vida que não seja da ordem de nosso livre-arbítrio , inclusive se matar se assim for o desejo.  Somos livres e sem destino definido ,e cada um veja como faz , mesmo que nossa condição comum , seja um mal-estar compartilhado, como diria Freud .
A moral como mecanismo de regulação da vida, ou como regras para o como deve ser, parece ter perdido a força de coesão e tem promovido tanta imoralidade em seu rastro, que nunca estivemos tão perdidos , já que nossa direção é ditada pela lógica da sobrevivência ou do gozo, nada que nos dê garantia de avanços .
O que parece é que no reino do humano a renovação como meio da evolução é algo que realmente depende de um esforço particular , ou seja , é preciso querer , um ato de concordância e de reconhecimento de que é preciso conquistá-la e isto só é possível com o aval da consciência .
Jung dizia que o mito moderno é o da “evolução da consciência”, lugar privilegiado onde a vida reúne esforços para seu aprimoramento , ou seja , a vida também se aperfeiçoa buscando nos aperfeiçoar , como se nossa potência humana almejasse novos modos de realização , pretensão que nos informa o quanto ainda somos esboços de propostas maiores .
Em sendo assim , o laboratório então seria de combinatórias entre forças retrógradas , aquelas que obedecem ao determinismo do já estabelecido e das que buscam avançar para novas explorações , sempre insatisfeitas com qualquer tampo em suas pretensões .
A beleza de tal proposta é que seríamos então objetos e sujeitos da evolução ,sendo que a renovação expressaria o valor da consciência na aquisição de novos alcances e enquanto elo de um devir de maior de sua inclusão no mistério da vida .
Penso que Freud ao conceituar a pulsão de morte tratava deste tema , embora tenha se desvinculado de qualquer ordem de sentido , desembocando então na questão do mal-estar comum , um tipo de lugar sem ida , um limiar do que foi possível , mas sem nenhuma transcendência para nenhum novo , ou de qualquer aprimoramento , já que o tema da evolução não é um tema caro a Psicanálise.
Não se renovar é a morte declarada ou indeclarada , um acuamento que nos embota em insignificâncias e que aos poucos vai nos insensibilizando para qualquer coisa maior , um tipo de estreitamento consentido que mata mas não permite morrer .
A pessoa sonha com sua morte como fim de um pesadelo , mas não tem força para morrer e com isso vive cheia de caricaturas que simulam a vida sem trazer nenhum entusiasmo sincero, uma ausência pela indiferença , um tipo “não conte comigo pois já não estou aqui”.
A tristeza é que a falta de renovação responde pelas caducações , o que ficou rígido demais , uma insolvência do que já não serve e por isto não pode invocar à vida como inclusão e participação , o defunto que pela lógica da morte ataca qualquer proposta , pois a vida se tornou uma denúncia do que já não consegue viver.
Nos guardemos de tal moléstia , pois não é uma manifestação súbita, mas uma construção laboriosa de muito tempo , talvez onde as contrariedades e desafios resultaram em revoltas inconfessáveis , que aos poucos foram minando o desejo de estar a favor ,e os antagonismos foram justificados pelo orgulho do que não se pode ou não se quis aprender .

 

 

 

Um comentário:

  1. Muito interessante este texto. Faz-me compreender o quanto é necessário seguir em frente, não se prender às questões do passado e estar aberto ao desconhecido, pois cada momento é algo novo.

    ResponderExcluir

Há ou não inveja do pênis?