24.3.13

MUTANTES E EXILADOS


O grande livro de Camus , um dos que  lhe rendeu o prêmio Nobel chama-se “O estrangeiro”, onde o protagonista chamado Meursalt , se mostra indiferente à morte da mãe ,e por isto , julgado perigoso pelo juiz , mesmo tendo assassinado um árabe.

Camus buscava retratar o “absurdo” da existênc ia e sua questão fundamental era o suicídio , pois indagava sobre o sentido ou não da existência , interrogação tirada da própria experiência de vida difícil que teve e de sua participação política ativa na vida do pós –guerra.

O absurdo em Camus, parecia ter como substrato a própria relação entre os homens , já que ele mesmo , de família pobre conheceu as dificuldades e opressões que os homens submetem aos homens . Talvez no fundo, nunca tenha achado o que justificasse tal opressões , e aliado as mazelas da vida, perguntava-se se a existência não é regida pelo Absurdo .

Quando me deparei com este livro fiquei com o tema na cabeça , sempre tendo em conta a indiferença emocional , a pouca significação mediante fatos, que por suposto espera-se sempre envolvimento e afetação , um comover-se pelos picos de dor do humano.

Mas com o tempo fui me dando conta que este estrangeiro de Camus , embora me tenha aberto o tema e a quem agradeço muito , não atendia algumas considerações que me pareciam preciosas  na questão do exílio existencial.

Tenho em conta que o viver, embora com forte apelo coletivo e regulado por suas ordenações, não prescinde do modo como cada um se insere , de tal forma , que esta inserção, seja o que nos difere,  é nossa particularidade fundamental .

Mas observo também, que esta inserção ,reflete às tensões do como nos sentimos mediante a tarefa do viver ,o quanto nos é caro ou barato este grande exercício diário de ratificar em si, um investimento e um dispêndio de energia que faz apelo constante ,e cuja justificativa é a significação de prazer ou não, que cada um encontra para suas disposições .

Se por um lado, o corpo nos dá a forma, e esta nos dá uma identidade de espécie enquanto um animal privilegiado , por outro , a consciência e o modo simbólico como nos movemos , nos remete à outra viagem ,regida pela tensão entre o estranho e o familiar .
O corpo, nosso eixo comum, nos iguala e nos engana , pois permite um consenso fictício, em função da nossa forma de aparelhamento , algo como um uniforme que nos veste e esconde além da anatomia ,nossa questão solitária e intransferível de Sentido .

Somos familiares numa dimensão que nos faz comum,  e estrangeiros na singularidade de nossas marcações únicas, uma transgressão constante que não pode ser vivida sem uma profunda angústia , já que aí , não se trata de uma métrica familiar , mas de uma constatação inarredável , só se é quando se rompe .

Esta ruptura é um ato único , desobediente , que requer coragem ,a coragem de Ser de Tillich, ao preço de exclusões dolorosas , já que o excluído se torna algum tipo de renegado , aquela criatura condenada às catacumbas , o exílio como castigo e alívio por não ser visto .

O estrangeiro em Camus, põe em xeque a ordem emocional do reconhecimento , a devolução emocional e afetiva do que se recebe , portanto , não chorar no enterro da mãe , além de ser ingrato , é uma suspeita patológica da alteridade , o sentido e relevância do outro .

Mas o nosso exilado , chora e reconhece , sem poder ser reconhecido , justo por ser portador de um vírus de estrangeirice , que não só não lhe concede identidade tribal , como ameaça algo de muito valor . Mas o que pode ser de valor assim ?
A própria mutação , diria eu, pois em geral, só se muda alinhado com a prospecção do futuro , como um desdobramento que não coloque em risco os pilares de ordenação da vida comunitária em seus mecanismos de reprodução , forma consagrada de se perpetuar .

Ora, um exilado não se interessa por isso .Pois é justo esse compromisso “aede eternum” que o perturba terrivelmente , formas-compromisso , contratos de antemão , que sufocam a dimensão experimental  da liberdade, ao  impor um roteiro que estabelece as molduras do depois .

O exilado não consegue sobreviver a tamanha exigência sem esforço ou sem romper com tal rigor , pois vive e respira o ar de sua experimentação , às ordenações são concessões que faz para se compor e participar do que é comum.
A vida no corpo lhe parece uma prisão domiciliar , onde cumpre a pena por não ter alternativa,  mas não lhe outorga nenhuma primazia , e não é atoa que alguns acabam por dispensar de vez o corpo , lhe tirando a vida.

Viver no substrato do corpo , na materialidade da vida com seus regulamentos , com seus rituais cheios de deveres e obrigações a cumprir , parecem tirar da vida o que tem de melhor , um assassinato a arte de viver , um sequestro estúpido a dimensão cromática da existência .

Daí muitos exilados fora do foco de suas paixões se tornam deprimidos , se arrastam , são entediados e pouco afeitos a vigília , no que essa lhe subscreve o agendamento das obrigações, enquanto a noite é o fulgor , o cenário para liberdade experimental , onde o corpo só é , como agenciador do gozo e dos prazeres , inclusive libertinos.
Propõem outra ordem para o viver , uma outra dimensão que aos olhos comuns são ameaças a serem combatidas , pois ferem a tradição , código de reiteração do valor da segurança como primordial, em relação a possível desordem da vida.
Encarnam invejas na conta de parecerem mais soltos e descolados por uma lado , mas suas fragilidades na performance do dia-a-dia lhes tornam alvos de críticas , o que faz doer , ainda mais quando vem de pessoas significativas , ponto crucial de uma ferida narcísica, de quem vive na vanguarda, ainda débito com a tradição .
O crescei e multiplicai-vos é a dimensão do corpo como ensina Nilton Bonder em seu livro “ A alma imoral “,e transgredi-lo por recusa é assinar uma dívida com a tradição,  cuja sentença dependerá da cabeça de cada um , onde o diferente precisará evitar se sacrificar como pagamento a essa transgressão .
Se assim não for tudo poderá ficar insuportável demais , e o sentido da exclusão atingir a própria razão de viver ,e a lógica do “ não caibo mais aqui” se impõe então dolorosamente , caso em que assistimos “ acidentes “ de overdoses ou outro tipo , despedidas contingenciais de quem já queria partir há muito tempo.

Vejo que onde a vida se exercita em lugares de excessão ao usual , algo importante parece querer se viabilizar , talvez porque nossa forma de viver ainda não possa contemplar outras, mas que nem por isso deixam de comparecer .
Penso o quanto devemos aqueles que ousaram tentar, e foram sacrificados por nossa ignorância segura, de “ tem que ser assim”, mesmo que nossa mesmice já esteja saturada por falta de opções .

Eis o que diz um mutante a respeito de outro , de forma inteligente e sutil, que só os poetas parecem conseguir na arte do dizer “ Ele é um bicho adoidado . Um gigante pelo avesso . Ele não tem início , nem fim . Está sempre descomeçando. Ele não tem frente , nem fundos .Sua gira tem trezentos e sessenta graus . Obrigado Chacal , um belo mutante , sem dúvida .

 

 

 

 

 

 

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