O grande livro de Camus , um dos que lhe rendeu o prêmio Nobel chama-se “O
estrangeiro”, onde o protagonista chamado Meursalt , se mostra indiferente à
morte da mãe ,e por isto , julgado perigoso pelo juiz , mesmo tendo assassinado
um árabe.
Camus buscava retratar o “absurdo” da existênc ia e sua
questão fundamental era o suicídio , pois indagava sobre o sentido ou não da
existência , interrogação tirada da própria experiência de vida difícil que
teve e de sua participação política ativa na vida do pós –guerra.
O absurdo em Camus, parecia ter como substrato a própria
relação entre os homens , já que ele mesmo , de família pobre conheceu as
dificuldades e opressões que os homens submetem aos homens . Talvez no fundo,
nunca tenha achado o que justificasse tal opressões , e aliado as mazelas da
vida, perguntava-se se a existência não é regida pelo Absurdo .
Quando me deparei com este livro fiquei com o tema na cabeça
, sempre tendo em conta a indiferença emocional , a pouca significação mediante
fatos, que por suposto espera-se sempre envolvimento e afetação , um comover-se
pelos picos de dor do humano.
Mas com o tempo fui me dando conta que este estrangeiro de
Camus , embora me tenha aberto o tema e a quem agradeço muito , não atendia
algumas considerações que me pareciam preciosas
na questão do exílio existencial.
Tenho em conta que o viver, embora com forte apelo coletivo
e regulado por suas ordenações, não prescinde do modo como cada um se insere ,
de tal forma , que esta inserção, seja o que nos difere, é nossa particularidade
fundamental .
Mas observo também, que esta inserção ,reflete às tensões do
como nos sentimos mediante a tarefa do viver ,o quanto nos é caro ou barato
este grande exercício diário de ratificar em si, um investimento e um dispêndio
de energia que faz apelo constante ,e cuja justificativa é a significação de
prazer ou não, que cada um encontra para suas disposições .
Se por um lado, o corpo nos dá a forma, e esta nos dá uma
identidade de espécie enquanto um animal privilegiado , por outro , a
consciência e o modo simbólico como nos movemos , nos remete à outra viagem ,regida
pela tensão entre o estranho e o familiar .
O corpo, nosso eixo comum, nos iguala e nos engana , pois
permite um consenso fictício, em função da nossa forma de aparelhamento , algo
como um uniforme que nos veste e esconde além da anatomia ,nossa questão
solitária e intransferível de Sentido .
Somos familiares numa dimensão que nos faz comum, e estrangeiros na singularidade de nossas
marcações únicas, uma transgressão constante que não pode ser vivida sem uma
profunda angústia , já que aí , não se trata de uma métrica familiar , mas de
uma constatação inarredável , só se é quando se rompe .
Esta ruptura é um ato único , desobediente , que requer
coragem ,a coragem de Ser de Tillich, ao preço de exclusões dolorosas , já que
o excluído se torna algum tipo de renegado , aquela criatura condenada às
catacumbas , o exílio como castigo e alívio por não ser visto .
O estrangeiro em Camus, põe em xeque a ordem emocional do reconhecimento
, a devolução emocional e afetiva do que se recebe , portanto , não chorar no
enterro da mãe , além de ser ingrato , é uma suspeita patológica da alteridade
, o sentido e relevância do outro .
Mas o nosso exilado , chora e reconhece , sem poder ser reconhecido
, justo por ser portador de um vírus de estrangeirice , que não só não lhe
concede identidade tribal , como ameaça algo de muito valor . Mas o que pode
ser de valor assim ?
A própria mutação , diria eu, pois em geral, só se muda
alinhado com a prospecção do futuro , como um desdobramento que não coloque em
risco os pilares de ordenação da vida comunitária em seus mecanismos de
reprodução , forma consagrada de se perpetuar .
Ora, um exilado não se interessa por isso .Pois é justo esse
compromisso “aede eternum” que o perturba terrivelmente , formas-compromisso ,
contratos de antemão , que sufocam a dimensão experimental da liberdade, ao impor um roteiro que estabelece as molduras
do depois .
O exilado não consegue sobreviver a tamanha exigência sem
esforço ou sem romper com tal rigor , pois vive e respira o ar de sua
experimentação , às ordenações são concessões que faz para se compor e
participar do que é comum.
A vida no corpo lhe parece uma prisão domiciliar , onde
cumpre a pena por não ter alternativa, mas não lhe outorga nenhuma primazia , e não é
atoa que alguns acabam por dispensar de vez o corpo , lhe tirando a vida.
Viver no substrato do corpo , na materialidade da vida com
seus regulamentos , com seus rituais cheios de deveres e obrigações a cumprir ,
parecem tirar da vida o que tem de melhor , um assassinato a arte de viver , um
sequestro estúpido a dimensão cromática da existência .
Daí muitos exilados fora do foco de suas paixões se tornam
deprimidos , se arrastam , são entediados e pouco afeitos a vigília , no que
essa lhe subscreve o agendamento das obrigações, enquanto a noite é o fulgor ,
o cenário para liberdade experimental , onde o corpo só é , como agenciador do
gozo e dos prazeres , inclusive libertinos.
Propõem outra ordem para o viver , uma outra dimensão que
aos olhos comuns são ameaças a serem combatidas , pois ferem a tradição ,
código de reiteração do valor da segurança como primordial, em relação a
possível desordem da vida.
Encarnam invejas na conta de parecerem mais soltos e
descolados por uma lado , mas suas fragilidades na performance do dia-a-dia lhes
tornam alvos de críticas , o que faz doer , ainda mais quando vem de pessoas
significativas , ponto crucial de uma ferida narcísica, de quem vive na
vanguarda, ainda débito com a tradição .
O crescei e multiplicai-vos é a dimensão do corpo como
ensina Nilton Bonder em seu livro “ A alma imoral “,e transgredi-lo por recusa é
assinar uma dívida com a tradição, cuja
sentença dependerá da cabeça de cada um , onde o diferente precisará evitar se
sacrificar como pagamento a essa transgressão .
Se assim não for tudo poderá ficar insuportável demais , e o
sentido da exclusão atingir a própria razão de viver ,e a lógica do “ não caibo
mais aqui” se impõe então dolorosamente , caso em que assistimos “ acidentes “ de
overdoses ou outro tipo , despedidas contingenciais de quem já queria partir há
muito tempo.
Vejo que onde a vida se exercita em lugares de excessão ao
usual , algo importante parece querer se viabilizar , talvez porque nossa forma
de viver ainda não possa contemplar outras, mas que nem por isso deixam de
comparecer .
Penso o quanto devemos aqueles que ousaram tentar, e foram
sacrificados por nossa ignorância segura, de “ tem que ser assim”, mesmo que
nossa mesmice já esteja saturada por falta de opções .
Eis o que diz um mutante a respeito de outro , de forma
inteligente e sutil, que só os poetas parecem conseguir na arte do dizer “ Ele
é um bicho adoidado . Um gigante pelo avesso . Ele não tem início , nem fim .
Está sempre descomeçando. Ele não tem frente , nem fundos .Sua gira tem
trezentos e sessenta graus . Obrigado Chacal , um belo mutante , sem dúvida .
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